1 de junho de 2019

Dzongsar Khyentse Rinpoche - Quando a renúncia é entendida como felicidade

Essencialmente, não é o ato de deixar o mundo material para trás que nós budistas cultuamos; antes, é a capacidade de enxergar os padrões habituais do apego a este mundo e à nossa pessoa, bem como a capacidade de renunciar a esse apego.

À medida que começamos a compreender as quatro visões, não nos desfazemos necessariamente das nossas coisas; começamos, sim, a mudar de atitude em relação a elas, modificando assim seu valor. Só porque você tem menos do que uma outra pessoa não significa que você tenha maior virtude ou pureza moral. Na verdade, a própria humildade pode ser uma forma de hipocrisia.

Quando compreendemos que o mundo material é impermanente e desprovido de essência, a renúncia deixa de ser uma forma de auto flagelação. Não significa que estamos sendo duros com nós mesmos. A palavra sacrifício adquire um significado diferente. Munidos desse entendimento, tudo passa a ter para nós um significado semelhante à saliva que cuspimos no chão. Não temos nenhum sentimentalismo em relação à saliva. A perda desse sentimentalismo é um caminho de sublime felicidade, sugata. Quando a renúncia é entendida como felicidade, as histórias de muitos outros príncipes, princesas e chefes guerreiros indianos, que outrora renunciaram à vida palaciana, tornam-se menos bizarras.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - A generosidade perfeita

Se formos medir a perfeição de um ato virtuoso, como a generosidade, por parâmetros materiais - quanto de pobreza foi eliminada -, nunca chegaremos à perfeição. A miséria e os desejos dos miseráveis nunca têm fim. Mesmo os desejos dos ricos nunca têm fim; na realidade, os desejos dos seres humanos jamais poderão ser plenamente satisfeitos.

De acordo com Sidarta, porém, a generosidade deve ser medida pelo grau de apego à coisa dada e ao eu que está dando. Ao perceber que o eu e tudo que ele possui é impermanente e desprovido de natureza verdadeira, nos desapegamos, e essa é a generosidade perfeita. Por isso, o primeiro ato que é recomendado nos sutras budistas é a prática da generosidade.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - A não existência do samsara é o nirvana

Como Buda disse no Sutra Prajnaparamita, todos os fenômenos são como um sonho e uma ilusão; mesmo a iluminação é como um sonho e uma ilusão. E, se houver algo maior ou mais grandioso do que a iluminação, isso também será como um sonho e uma ilusão. Seu discípulo, o grande Nagarjuna, escreveu que o Senhor Buda não afirmou que após abandonar o samsara existe o nirvana. A não existência do samsara é o nirvana. Uma faca é afiada num processo em que duas coisas se exaurem: a pedra de amolar e o metal. Do mesmo modo, a iluminação é resultado da exaustão dos obscurecimentos e da exaustão dos antídotos dos obscurecimentos. Ao final, o caminho da iluminação terá de ser abandonado. Se você ainda se define como budista, ainda não é um buda.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - O amor e a compaixão são como a luz que emana da natureza búdica

Um facho de luz na escuridão da tempestade

No entanto, como detectar a natureza búdica em meio a tanta ignorância, escuridão e confusão? O primeiro sinal de esperança para um marinheiro perdido no mar é avistar um facho de luz na escuridão da tempestade. Ao navegar em sua direção, ele chega à fonte de luz, ao farol.

O amor e a compaixão são como a luz que emana da natureza búdica. No começo, a natureza búdica é um mero conceito muito além da nossa visão, mas se gerarmos amor e compaixão um dia conseguiremos caminhar em sua direção. Pode ser difícil enxergar a natureza búdica daqueles que estão perdidos na escuridão da ganância, do ódio e da ignorância. A natureza búdica dessas pessoas é tão distante que parece inexistir. Entretanto, até as pessoas mais sombrias e violentas têm lampejos de amor e compaixão, ainda que breves e tênues. Se esses raros vislumbres forem nutridos e se for investida energia para seguir na direção da luz, a natureza búdica dessas pessoas pode ser revelada.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - As emoções não constituem uma parte intrínseca do nosso ser

Sidarta também estava tentando eliminar o sofrimento pela raiz, mas não estava idealizando soluções tais como iniciar uma revolução política, migrar para outro planeta ou criar uma nova ordem econômica mundial. Ele não estava sequer pensando em criar uma religião ou um código de conduta que propiciassem paz e harmonia. Sidarta explorou o sofrimento com a mente aberta e, por meio de incansável contemplação, descobriu que, no fundo, são as nossas emoções que provocam o sofrimento. Na realidade, elas são sofrimento. De um jeito ou de outro, direta ou indiretamente, todas as emoções nascem do egoísmo, no sentido de que implicam em apego ao eu.

Além disso, ele descobriu que, por mais reais que pareçam, as emoções não constituem uma parte intrínseca do nosso ser. Elas não são inatas, nem tampouco alguma espécie de maldição ou implante imposto por alguém ou por algum deus. As emoções surgem quando determinadas causas e condições se reúnem, como, por exemplo, quando você se precipita em pensar que alguém está a criticá-lo, ignorá-lo ou privá-lo de algum ganho. Então, as emoções correspondentes vêm à tona.

No momento em que aceitamos essas emoções, no momento em que entramos no jogo delas, perdemos a sanidade e a capacidade de percepção. Ficamos como que ligados a uma tomada de 220 volts. Assim, Sidarta encontrou a solução: consciência desperta. Se você realmente deseja eliminar o sofrimento, precisa acordar a consciência e prestar atenção às suas emoções, aprendendo a não ser envolvido pela tensão elevada e agitação que elas criam.

Se você examinar as emoções como Sidarta fez, se tentar identificar a origem delas, vai descobrir que as emoções partem de uma compreensão equivocada, sendo, por conseguinte, fundamentalmente falhas. Todas as emoções são, basicamente, uma forma de preconceito. Em cada emoção há sempre um componente de julgamento.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - O eu é ilusório, uma falácia, um erro, inexistente

Descendo à raiz: o Eu (inexistente)

Todas essas várias emoções e suas conseqüências provêm de uma compreensão equivocada, e essa compreensão equivocada provém de uma fonte, que é a raiz de toda a ignorância: o apego ao eu.

Presumimos que cada um de nós é um “eu”, que existe uma entidade chamada “a minha pessoa”. O eu, porém, é apenas mais uma compreensão equivocada. De modo geral, fabricamos a noção de um eu que parece ser uma entidade sólida. Somos condicionados a considerar essa noção como algo concreto e real. Pensamos, Eu sou esta forma, levantando a mão. Pensamos, Eu tenho forma; este é o meu corpo. Pensamos, A forma sou eu; eu sou alto. Pensamos, Eu habito esta forma, apontando para o peito. Fazemos o mesmo com os sentimentos, percepções e ações. Eu tenho sentimentos; eu sou minhas percepções...

Sidarta, porém, deu-se conta de que não existe, em lugar nenhum, uma entidade independente que corresponda ao conceito de eu, dentro do corpo ou fora dele. Como a ilusão de ótica do círculo de fogo, o eu é ilusório. Ele é uma falácia - fundamentalmente um erro e, em última análise, inexistente. No entanto, do mesmo modo que podemos nos iludir com o aro de fogo, todos nos iludimos ao imaginar que somos o eu.

Quando olhamos para o nosso corpo, sentimentos, percepções, ações e consciência, vemos que são diferentes componentes do que pensamos ser o nosso “eu”, mas, se formos examinar esses componentes, verificaremos que o “eu” não reside em nenhum deles.

O apego à falácia do eu é um ato de ridícula ignorância; ele perpetua a ignorância e leva a todo tipo de dor e decepção. Tudo o que fazemos na vida depende de como percebemos a nossa pessoa, o nosso eu; assim, se essa percepção estiver baseada em uma compreensão errada, como inevitavelmente está, esse erro permeará tudo o que fizermos, virmos e vivenciarmos. Não é uma simples questão de uma criança que interpreta erroneamente a luz e o movimento; toda a nossa existência está assentada em premissas muito frágeis.

No momento em que Sidarta descobriu que o eu não existia, descobriu que tampouco existia um mal dotado de existência intrínseca - o que havia era apenas a ignorância. Especificamente, ele contemplou a ignorância que cria o rótulo eu e o pendura em um grupo de fenômenos compostos, desprovidos de qualquer base, atribuindo importância a esse eu e afligindo-se em protegê-lo. Essa ignorância, ele constatou, conduz diretamente ao sofrimento e à dor.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.