1 de junho de 2019

Dzongsar Khyentse Rinpoche - Quando a renúncia é entendida como felicidade

Essencialmente, não é o ato de deixar o mundo material para trás que nós budistas cultuamos; antes, é a capacidade de enxergar os padrões habituais do apego a este mundo e à nossa pessoa, bem como a capacidade de renunciar a esse apego.

À medida que começamos a compreender as quatro visões, não nos desfazemos necessariamente das nossas coisas; começamos, sim, a mudar de atitude em relação a elas, modificando assim seu valor. Só porque você tem menos do que uma outra pessoa não significa que você tenha maior virtude ou pureza moral. Na verdade, a própria humildade pode ser uma forma de hipocrisia.

Quando compreendemos que o mundo material é impermanente e desprovido de essência, a renúncia deixa de ser uma forma de auto flagelação. Não significa que estamos sendo duros com nós mesmos. A palavra sacrifício adquire um significado diferente. Munidos desse entendimento, tudo passa a ter para nós um significado semelhante à saliva que cuspimos no chão. Não temos nenhum sentimentalismo em relação à saliva. A perda desse sentimentalismo é um caminho de sublime felicidade, sugata. Quando a renúncia é entendida como felicidade, as histórias de muitos outros príncipes, princesas e chefes guerreiros indianos, que outrora renunciaram à vida palaciana, tornam-se menos bizarras.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - A generosidade perfeita

Se formos medir a perfeição de um ato virtuoso, como a generosidade, por parâmetros materiais - quanto de pobreza foi eliminada -, nunca chegaremos à perfeição. A miséria e os desejos dos miseráveis nunca têm fim. Mesmo os desejos dos ricos nunca têm fim; na realidade, os desejos dos seres humanos jamais poderão ser plenamente satisfeitos.

De acordo com Sidarta, porém, a generosidade deve ser medida pelo grau de apego à coisa dada e ao eu que está dando. Ao perceber que o eu e tudo que ele possui é impermanente e desprovido de natureza verdadeira, nos desapegamos, e essa é a generosidade perfeita. Por isso, o primeiro ato que é recomendado nos sutras budistas é a prática da generosidade.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - A não existência do samsara é o nirvana

Como Buda disse no Sutra Prajnaparamita, todos os fenômenos são como um sonho e uma ilusão; mesmo a iluminação é como um sonho e uma ilusão. E, se houver algo maior ou mais grandioso do que a iluminação, isso também será como um sonho e uma ilusão. Seu discípulo, o grande Nagarjuna, escreveu que o Senhor Buda não afirmou que após abandonar o samsara existe o nirvana. A não existência do samsara é o nirvana. Uma faca é afiada num processo em que duas coisas se exaurem: a pedra de amolar e o metal. Do mesmo modo, a iluminação é resultado da exaustão dos obscurecimentos e da exaustão dos antídotos dos obscurecimentos. Ao final, o caminho da iluminação terá de ser abandonado. Se você ainda se define como budista, ainda não é um buda.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - O amor e a compaixão são como a luz que emana da natureza búdica

Um facho de luz na escuridão da tempestade

No entanto, como detectar a natureza búdica em meio a tanta ignorância, escuridão e confusão? O primeiro sinal de esperança para um marinheiro perdido no mar é avistar um facho de luz na escuridão da tempestade. Ao navegar em sua direção, ele chega à fonte de luz, ao farol.

O amor e a compaixão são como a luz que emana da natureza búdica. No começo, a natureza búdica é um mero conceito muito além da nossa visão, mas se gerarmos amor e compaixão um dia conseguiremos caminhar em sua direção. Pode ser difícil enxergar a natureza búdica daqueles que estão perdidos na escuridão da ganância, do ódio e da ignorância. A natureza búdica dessas pessoas é tão distante que parece inexistir. Entretanto, até as pessoas mais sombrias e violentas têm lampejos de amor e compaixão, ainda que breves e tênues. Se esses raros vislumbres forem nutridos e se for investida energia para seguir na direção da luz, a natureza búdica dessas pessoas pode ser revelada.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - As emoções não constituem uma parte intrínseca do nosso ser

Sidarta também estava tentando eliminar o sofrimento pela raiz, mas não estava idealizando soluções tais como iniciar uma revolução política, migrar para outro planeta ou criar uma nova ordem econômica mundial. Ele não estava sequer pensando em criar uma religião ou um código de conduta que propiciassem paz e harmonia. Sidarta explorou o sofrimento com a mente aberta e, por meio de incansável contemplação, descobriu que, no fundo, são as nossas emoções que provocam o sofrimento. Na realidade, elas são sofrimento. De um jeito ou de outro, direta ou indiretamente, todas as emoções nascem do egoísmo, no sentido de que implicam em apego ao eu.

Além disso, ele descobriu que, por mais reais que pareçam, as emoções não constituem uma parte intrínseca do nosso ser. Elas não são inatas, nem tampouco alguma espécie de maldição ou implante imposto por alguém ou por algum deus. As emoções surgem quando determinadas causas e condições se reúnem, como, por exemplo, quando você se precipita em pensar que alguém está a criticá-lo, ignorá-lo ou privá-lo de algum ganho. Então, as emoções correspondentes vêm à tona.

No momento em que aceitamos essas emoções, no momento em que entramos no jogo delas, perdemos a sanidade e a capacidade de percepção. Ficamos como que ligados a uma tomada de 220 volts. Assim, Sidarta encontrou a solução: consciência desperta. Se você realmente deseja eliminar o sofrimento, precisa acordar a consciência e prestar atenção às suas emoções, aprendendo a não ser envolvido pela tensão elevada e agitação que elas criam.

Se você examinar as emoções como Sidarta fez, se tentar identificar a origem delas, vai descobrir que as emoções partem de uma compreensão equivocada, sendo, por conseguinte, fundamentalmente falhas. Todas as emoções são, basicamente, uma forma de preconceito. Em cada emoção há sempre um componente de julgamento.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - O eu é ilusório, uma falácia, um erro, inexistente

Descendo à raiz: o Eu (inexistente)

Todas essas várias emoções e suas conseqüências provêm de uma compreensão equivocada, e essa compreensão equivocada provém de uma fonte, que é a raiz de toda a ignorância: o apego ao eu.

Presumimos que cada um de nós é um “eu”, que existe uma entidade chamada “a minha pessoa”. O eu, porém, é apenas mais uma compreensão equivocada. De modo geral, fabricamos a noção de um eu que parece ser uma entidade sólida. Somos condicionados a considerar essa noção como algo concreto e real. Pensamos, Eu sou esta forma, levantando a mão. Pensamos, Eu tenho forma; este é o meu corpo. Pensamos, A forma sou eu; eu sou alto. Pensamos, Eu habito esta forma, apontando para o peito. Fazemos o mesmo com os sentimentos, percepções e ações. Eu tenho sentimentos; eu sou minhas percepções...

Sidarta, porém, deu-se conta de que não existe, em lugar nenhum, uma entidade independente que corresponda ao conceito de eu, dentro do corpo ou fora dele. Como a ilusão de ótica do círculo de fogo, o eu é ilusório. Ele é uma falácia - fundamentalmente um erro e, em última análise, inexistente. No entanto, do mesmo modo que podemos nos iludir com o aro de fogo, todos nos iludimos ao imaginar que somos o eu.

Quando olhamos para o nosso corpo, sentimentos, percepções, ações e consciência, vemos que são diferentes componentes do que pensamos ser o nosso “eu”, mas, se formos examinar esses componentes, verificaremos que o “eu” não reside em nenhum deles.

O apego à falácia do eu é um ato de ridícula ignorância; ele perpetua a ignorância e leva a todo tipo de dor e decepção. Tudo o que fazemos na vida depende de como percebemos a nossa pessoa, o nosso eu; assim, se essa percepção estiver baseada em uma compreensão errada, como inevitavelmente está, esse erro permeará tudo o que fizermos, virmos e vivenciarmos. Não é uma simples questão de uma criança que interpreta erroneamente a luz e o movimento; toda a nossa existência está assentada em premissas muito frágeis.

No momento em que Sidarta descobriu que o eu não existia, descobriu que tampouco existia um mal dotado de existência intrínseca - o que havia era apenas a ignorância. Especificamente, ele contemplou a ignorância que cria o rótulo eu e o pendura em um grupo de fenômenos compostos, desprovidos de qualquer base, atribuindo importância a esse eu e afligindo-se em protegê-lo. Essa ignorância, ele constatou, conduz diretamente ao sofrimento e à dor.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

21 de abril de 2019

Gustavo Gitti - Quanto mais eu quiser expandir a compaixão, mais eu tenho que expandir a sabedoria

Quanto mais você vai horizontalmente, quanto você vai cada vez mais expandindo no sentido da compaixão - do abraço, do calor -, na verdade você vai ver que o que você precisa é, justamente, ampliar para o céu [verticalmente].

Então é paradoxal, quando você começa a analisar mesmo, você vai ver que para ampliar a mente no sentido de acomodar todos os seres, você vai ter que ampliar a mente no sentido de acomodar as experiências, como diz a Elizabeth Mattis-Namgyel: você precisa de espaço. Então para você ter compaixão, você precisa de espaço.

E o que abre espaço é sabedoria, porque a sabedoria significa ver espaço onde não parece ter espaço. Ver liberdade onde parece ter alguma coisa que não é liberdade. Ver amplidão onde parece ter fechamento. Ver algo completamente transparente onde parece ter alguma coisa sólida. Ver uma coisa livre onde parece ter alguma coisa que é alguma coisa.

A gente precisa dessa sabedoria, senão não vai abrir espaço. Não abrindo espaço, não chego em todos os seres. Também não vou ter os meios hábeis, não vou saber o que falar, e assim por diante.

Então, quanto mais eu quiser expandir a compaixão, mais eu tenho que expandir a sabedoria.

A sabedoria, o fim dela, o fim desse treinamento, é o que a gente vai chamar de iluminação - e a compaixão ela vai se expandindo, na decorrência disso. E aí, no fim, você não consegue separar compaixão de sabedoria, e vai surgir uma noção de compaixão não-dual, que é o terceiro tipo de compaixão.

Compaixão que é pelo outro é uma compaixão mais ou menos. Uma compaixão mesmo é além da noção de outro, de eu, de alguém ajudando alguma coisa, de alguém que precisa ser ajudado e até mesmo de sofrimento. Aí é quase que inseparável do espaço, não é mais assim "Eu tenho compaixão pelo outro"; não tem tanto isso.

Se eu quiser mesmo ajudar os seres, a melhor ajuda que eu posso fazer pelos seres é, primeiro, olhar que eles não são seres como parecem ser e eles não estão sofrendo como parecem. Porque se eu achar que eles são e que eles estão sofrendo, então agora eu tenho um problema, eu vou ter que tirar eles do sofrimento - e aí, "boa sorte".

Então, sem sabedoria, os sofrimentos não estão liberados. Daí é muito difícil de tirar o sofrimento. Com sabedoria, não tem sofrimento, daí é só ver. A compaixão se torna bem mais interessante com sabedoria. Não tem como fugir da sabedoria e da noção da liberação. Eu preciso manter a liberação sempre em mente.

fonte: curso "Praticando o darma nas relações", #3, a partir de 1:22:00 - http://www.cebb.org.br/audio-do-curso-praticando-o-darma-nas-relacoes-florianopolis-gustavo-gitti/

Gustavo Gitti - O outro nem quer você! Ele quer ser feliz e se iluminar!

Se vocês viverem o amor mesmo, não está conectado com uma pessoa. Não tem como estar conectado com uma pessoa. O amor é grande! Uma das coisas legais numa relação é você falar para a pessoa assim: "O jeito de eu te amar com o coração amplo é eu amar a todos. Porque se eu amar só você o meu coração fica estreito, daí nem você direito vai ter o amor que é o potencial do meu coração. Então para eu te amar, eu tenho que amar a todos, está bem? Se eu amar só você, eu vou amar com coração muito pequeno, então eu vou te amar muito mal. Para eu te amar bem, eu vou ter que amar todos."

A pessoa vai ter que entender que para você vir com toda atenção do mundo para ela, muito aberto, você não pode fechar para os outros. Porque se você fecha para os outros, você treina fechar, você chega para ela e está fechado. Então se ela quiser o melhor de você, o melhor amor de você, ela vai querer que você ame todos com esse amor. É muito legal.

Pergunta: Mas, via de regra, as pessoas não querem isso. A pessoa quer se sentir única, não quer que você ame a outra...

Gustavo Gitti: Não, ela quer ser feliz, na verdade. Ela acha que ela vai conseguir ser feliz sendo especial, ou tendo um comprovante seu. Mas na medida que ela ver que isso dá errado, várias e várias vezes, ela vai começar a questionar isso. Sua Santidade Dalai Lama diz o seguinte: "Todos os seres querem a felicidade e evitar o sofrimento. Essa é a versão Chenrezig. A versão Manjushri, de Dzongsar Khyenttse Rinpoche - todas tão perfeitas -, mas a versão Manjushri é: "Todos os seres querem a iluminação, no fundo."

Porque o que que é ser feliz? Então você pega esse desejo dos seres - se você levar até o fim, com sabedoria, isso é iluminação. Desfrutar do potencial, da natural felicidade, sukkha! Que a gente nem pensa mais em felicidade, é natural espaço, a felicidade não é nem uma questão mais. Então o que que é que os seres querem? Isso! Os seres querem ser iluminados. Então qualquer ação que você ajudar eles nesse caminho, mesmo se ele fizer birra ou não, em algum momento, não é que ele vai agradecer você, em algum momento, ele vai perceber que foi útil.

Então só de você chegar e manifestar esse exemplo diante dele, ele percebe que, para você ser a melhor pessoa ao lado dele, você não pode ser uma pessoa ruim para os outros. Você tem que ser a melhor pessoa para os outros. Mas quando você começa a ser a melhor pessoa para os outros, naturalmente ele não vai ser especial, ele basicamente está mais próximo. Só que ele começa a ser convidado para se alegrar por você. Daí você vai negar isso do outro? Na verdade, a felicidade dele vai vir disso! Não de você mimar ele! Então você quer que ele seja feliz, então você ajuda ele a ser feliz, que é o quê? Se alegrar por você! Então você não olha ele como alguém carente, dando nascimento inferior, você olha ele lá em cima!

(...)

Na verdade, o que ela quer mesmo é ser feliz, e como é que ela vai conseguir isso? Se iluminando. Se iluminar passa por se alegrar pela felicidade dos outros. A mente dela se expande.

Confiar que o outro, na verdade, quer se iluminar. Ele não quer alguém perto dele... Ele quer ser feliz. Ele não quer nem a gente! Você vai desperdiçar sua vida calculando quanto você tem que ficar perto de alguém? O outro nem quer você! Ele quer ser feliz e se iluminar! Você vai ser útil na medida que você apoiar isso. Se você ficar perto do outro e não apoiar isso, você está fazendo ele perder tempo. Por exemplo, se você alimentar a carência do outro, isso é horrível! Pode ser que pareça ser bom, porque o outro fica assim [próximo, vendido]... mas você tem que olhar a longo prazo: ele quer se iluminar, ele está longe de se iluminar, porque ele está sendo alimentado por você, e você está topando isso, alimentando a carência dele.

Não significa também que a gente não vai se aproximar dos seres, ou não vai em algum momento também alimentar um pouco, mas a gente vai fazer tudo isso visando a liberação dele. A gente tem um jogo longo com os seres. A gente também não quer seguir casado, não tem um jogo desse tipo, a gente quer se iluminar e a liberação de todos os seres. Então o nosso jogo com os seres é bem longo, é o mais longo que tem.

Por isso que a gente fica muito paciente. A pessoa vem e fala assim: "vocêêeeaahhhhh!!! [berro]" - você fica tranquilão... porque a gente vai se encontrar, para sempre! Então você fica super tranquilo, porque você não tem uma relação que acaba amanhã; o negócio é longo, é super longo. (...) Você nunca fecha as relações, com os seres todos.

Daí o casamento naturalmente vai se tornar mais uma dessas relações. Vocês não vão ter um estreitamento do tipo de achar que o casamento é uma relação especial. O casamento, basicamente, é morar junto, mais próximo, e só. E transar, ou qualquer coisa. Tem mais nada. O outro não é nada, você não é nada, nada foi consolidado, tem nada aqui de diferente. Então a gente tem que desromantizar a relação do casamento. Claro, socialmente a gente vai falar "estou casado", whatever. Mas a gente começa a olhar para os outros como mais um, mesmo. E olhar como mais um não significa diminuir o outro. Significa elevar todos os outros.

Por que que a gente abre o coração para um só? Não faz sentido. Mas não significa também transar com todos, porque também não faz sentido! E também nem tentar nem ser próximo de todos, porque naturalmente, pela questão cármica, não tem como a gente morar junto de todo mundo, tomar café da manhã com todo mundo, não tem! Então é tranquilo ter algumas pessoas mais próximas. Mas internamente você mantém equanimidade, uma sensação de sol, a gente brilha e irradia igualmente. Só que os seres podem fechar janelas, e também podem se aproximar e se distanciar. Mas nós não nos aproximamos, nem distanciamos e nem filtramos, nós irradiamos igualmente.

fonte: curso "Praticando o darma nas relações", #2, a partir de 1:00:49 - http://www.cebb.org.br/audio-do-curso-praticando-o-darma-nas-relacoes-florianopolis-gustavo-gitti/

Gustavo Gitti - Motivação é escolher qual mente você quer

A noção da motivação é como se fosse assim: a gente tem que lembrar que o tempo inteiro a gente tem uma mente; e o tempo inteiro essa mente ela está estreita ou ampla. Então o que que significa definir a motivação? Significa, simplesmente, definir qual mente você quer ter momento a momento; só isso. A mente já vai estar, momento a momento. Só que se eu não escolher qual mente eu quero ter, minha motivação, em geral, vai ser estreita. Então a prática da motivação é muito simples, ela é você escolher qual mente você quer ter, com qual mente você quer dar "oi" pras pessoas, com qual mente você quer praticar, então é um posicionamento da mente. Eu tenho uma mente, e com qual mente eu vou fazer o que eu vou fazer?

fonte: curso "Praticando o darma nas relações" #3, a partir de 10:00 - http://www.cebb.org.br/audio-do-curso-praticando-o-darma-nas-relacoes-florianopolis-gustavo-gitti/

19 de abril de 2019

Gustavo Gitti - Um bom caminho vai fazer você descobrir você mesmo, os outros e a vida

Pergunta - Quanto que a pessoa precisaria se afiliar a algo religioso para seguir um método ou caminho desse jeito que você colocou agora? A gente sente que isso às vezes é um ponto de aversão, de ouvir que isso está ligado a uma religião, ou ao budismo, e isso afasta algumas pessoas. Isso é budista? Esse caminho, por exemplo, o caminho que culmina na iluminação, isso é budista? Isso tem necessariamente um cunho religioso?

Resposta - O que a gente define como religião, se a gente questionar, questionar e questionar, a gente não sabe bem como que separa religião, ciência e filosofia. Se você questionar qualquer pessoa, ela vai ter problemas em definir o que que é o quê. Porque, de fato, isso tem uma mistura muito grande no nosso mundo.

Eu acho mais interessante pensar na experiência humana. A experiência humana tem muitas qualidades, muitas atividades que parecem mais científicas, mais filosóficas ou mais religiosas. Se a pessoa acha que ela não é religiosa, ela deveria olhar a casa dela. Ela tem um altar na casa dela. Nesse altar, ela cultua alguma coisa. Por um tempo, eu tiver um altar no meu quarto que tinha cremes de massagem, óleos, coisas assim. Era minha religião, meu altar. Tem pessoas que tem uma tela bem grande, que ela cultua aquilo. Às vezes ela cultua Netflix, é a religião da pessoa, o entretenimento. Tem pessoas que tomam o empreendedorismo como religião, e assim por diante. Então a gente tem religião, nós somos seres que têm essa sensação. É difícil a pessoa falar que não é, que não tem essa qualidade. Então, eu iria pela experiência humana.

A experiência humana não é budista, não é taoista. A mente humana não é budista. O sofrimento não é budista. A impermanência não é budista. A transformação da mente não é budista. A estabilidade, a lucidez, a sabedoria, a compaixão, não têm patente budista, nem taoista, nem cristã. Essas qualidades são acessíveis, não importa tanto o método, mas não faz sentido você ignorar os grandes seres da humanidade. Assim como se você quer aprender Neurociência, você não tem porque ignorar: "Ai! Mas isso aí é universidade." Igual a gente faz com religião. "Ah, não, não, não... eu queria Neurociência... não, universidade não dá pra mim... mestrado... eu não gosto de pessoas que fazem mestrado. E essa parte também, laboratório... pra mim também tenho dificuldade. Eu queria neurociência, mesmo... mas laboratório eu não piso, sabe?!"

Então a gente tem uma visão que é interessante. A pessoa está dentro do laboratório, olhando um cérebro. Quando vem jornalistas e perguntam para esse cientista, eles não perguntam "O que você acredita?". "Estamos aqui com o cientista, no que você acredita?". Não. Eles perguntam: "O que você descobriu". Porque tem uma sensação que tem algo na realidade que eles estão olhando.

Se você pega umas pessoas numa sala de meditação, num templo, elas estão ali por muito tempo, muitas horas. Assim como o cientista está olhando o cérebro, elas estão olhando a mente; essa coisa que a gente baniu da cultura também. Elas estão olhando a mente. Para nós, em geral, parece que a pessoa não está fazendo nada. Quem está olhando um cérebro, "Ah, isso sim, isso é Ciência." Mas olhar a mente, não. A gente valoriza mais o cérebro do que a mente. Mas essa pessoa que está há muito tempo olhando a mente, quando vem o jornalista, ele não pergunta "O que você descobriu?". Ele pergunta: "No que você acredita?". "No que os budistas acreditam?". Então não é esse o ponto.

O ponto é a gente entender que existe uma ciência em primeira pessoa, que está cada vez mais reconhecida, é só olhar os trabalhos do Instituto Mind and Life. Existe uma ciência em primeira pessoa de investigação da mente. E quando a gente começa a fazer esse trabalho, vamos descobrir que a mente tem esse potencial de compaixão, que não é budista, de sabedoria, etc. Mas quem fez esse trabalho, muitas vezes, está dentro de uma universidade, de uma instituição, de uma organização, que é justamente para chegar até nós os métodos. Imagina como a gente teria acesso a tudo isso que a gente descobriu, sem museus, sem bibliotecas. "Ah, eu quero muito estudar literatura... mas biblioteca, pra mim... eu não passo por esse portão aí da USP, porque..."

Então não faz sentido a gente ter esse pé atras com religião, com templos, com roupas e coisas do tipo. A gente vê um cara vestido todo de vinho, ou açafrão, ou todo de preto, daí a gente: "Ai, ele é religioso". A gente vê um outro todo vestido de branco [médico] e acha ótimo. Então não tem porque a gente ter esse pé atrás com aspectos culturais e ritualísticos. A gente tem rituais também na nossa cultura. A gente não deveria ter esse pé atrás só porque aquilo é diferente [vindo de outra cultura]. Não é "Ai, é religioso, então eu não posso."

E uma vez que você começa a entender que você não quer virar budista, você começa a se apropriar, se empoderar desses métodos, pegar para você e fazer aquilo ser vivo e testar, se funciona ou não funciona. Nunca ninguém entra na USP para virar uspiano; se virou, é um problema. A pessoa entra para usar a USP pro caminho dela. Assim também é uma boa relação com o budismo, ou qualquer outro caminho: você usa aquele método. Você não entra para virar budista, você entra para virar lúcido, estável, compassivo. E aí você usa!

Na verdade, a gente não está usufruindo da riqueza da nossa família humana. A gente deveria olhar para todos os seres lúcidos do passado e falar: "meu, tem muita riqueza!" Se essa riqueza chegou para mim por meio das organizações budistas, organizações Tabajara [risos], ou não, não importa. Importa é esse método.

Quanto mais eu olho o método, ou seja, quanto mais, no caso do budismo, quanto mais budista eu viro, menos budista eu viro. Mais eu percebo que não tem nada religioso ali. Tem só assim: "Verifique a sua mente. Experimente tal coisa. Compaixão funciona assim. Veja como você sofre quando é assim." E assim vai. Não tem crenças ali. Se tiver crenças, descarte; você não está num bom caminho. Mas se quanto mais você arranha, mais aprofunda, menos crença você tem e mais espelho da sua mente e da vida; mais profunda fica tua relação com a vida; mais o budismo te leva para fora dele - isso é um bom caminho.

Esse também é um bom professor. Professor de seita vai levar para dentro dele - muitas vezes de modo real, ele pra dentro de você -, ele não vai te levar para fora dele, para além dele. Um bom caminho vai fazer você descobrir você mesmo, os outros e a vida. A gente poderia entender as práticas das tradições de sabedoria desse modo.

fonte: "Como viver uma vida com sentido" (Podcast Coemergência), a partir de 17:25 - http://www.coemergencia.com.br/coemergencia-1-gustavo-gitti/

Thich Nhat Hahn - O Nirvana é, antes de tudo, a remoção das percepções erradas

O Nirvana é, antes de tudo, a remoção das percepções erradas. E quando você remove percepções erradas, você remove o sofrimento.

Ao meditar profundamente, você descobre que mesmo ideias como ser e não-ser, nascimento e morte, ir e vir, são ideias erradas. Se você pode tocar a realidade em profundidade, você percebe que tal coisa, que significa a realidade suprema, está livre do nascimento, da morte, do vir, do ir, do ser, do não-ser. É por isso que o Nirvana é, antes de tudo, a remoção de noções, de ideias, que servem de base para o mal-entendido e o sofrimento.

Se você tem medo da morte, do nada, do não-ser, é porque você tem percepções erradas sobre a morte e sobre o não-ser. O cientista francês Lavoisier disse que "não há nascimento, não há morte". Ele apenas observou a realidade ao seu redor e chegou à conclusão de que "rien ne se crée, rien ne se perd."

(...)

O Buda não morreu. O Buda só continuou com sua sanga, pelo seu dharma, e você pode tocar o Buda no aqui e no agora. E é por isso que ideias como nascer, morrer, ir e vir, ser e não ser, devem ser removidas pela prática de olhar profundamente. E quando você pode remover essas noções, você é livre e não tem medo. E o não-medo é o verdadeiro fundamento da grande felicidade. Como até agora o medo existe em seu coração, a felicidade não pode ser perfeita.

E é por isso que o Nirvana não é algo que você recebe no futuro. Nirvana é a capacidade de remover as noções erradas, percepções erradas, que é a prática da liberdade. O nirvana pode ser traduzido como liberdade: liberdade das visões. E no budismo, todas as visões são visões erradas. Quando você entra em contato com a realidade, você não tem mais visões. Você tem sabedoria. Você tem um encontro direto com a realidade e isso não é mais chamado de visão.

fonte: "Budismo, por Thich Nhat Hanh" - https://www.youtube.com/watch?v=moUVnxmek1Q

16 de abril de 2019

Chögyam Trungpa Rinpoche - A compaixão torna possível as ações transcendentais do bodisatva

A compaixão como a chave para a via aberta, o Mahayana, torna possível as ações transcendentais do bodisatva. O caminho do bodisatva inicia-se com generosidade e abertura - oferecer e abrir-se, o processo de entrega. A abertura não é uma questão de dar alguma coisa a alguém, mas de abrir mão de exigências e dos critérios básicos dessas exigências. Essa é a dana paramita, a paramita da generosidade. É aprender a confiar no fato de que não é preciso garantir seu terreno; é aprender a confiar em sua riqueza fundamental; é poder correr o risco de estar aberto. Essa é a via aberta. Se há uma renúncia à atitude psicológica de "exigir", a sanidade básica começa a se desenvolver e isso conduz à ação seguinte do bodisatva - shila paramita, a paramita da moralidade ou da disciplina.

Estando aberto e tendo renunciado a tudo, sem mais referências aos critérios básicos do "eu estou fazendo isto, eu estou fazendo aquilo", sem referência a si mesmo, outras situações ligadas à manutenção do ego ou ao seu enriquecimento tornam-se irrelevantes. Essa é a moralidade final, que intensifica a situação e abertura e coragem: não há medo de ferir a si mesmo nem a outras pessoas porque você está completamente aberto. Você não sente que as situações deixam de lhe inspirar, o que lhe traz paciência, kshanti paramita. E a paciência conduz à energia, vyria, a "qualidade do deleite". Há a intensa alegria do envolvimento, que é energia, e que também proporciona a visão panorâmica da meditação aberta, a experiência de dhyana, a "abertura". Você já não olha a situação externa como separada de você, tão envolvido que está na dança e no jogo da vida.

Você torna-se então ainda mais aberto. Não classifica as coisas como tendo sido rejeitadas ou aceitas. Você simplesmente acompanha cada situação. Não participa de nenhuma disputa, nem a que tenta derrotar um inimigo, nem a que busca um objetivo. Não há envolvimento como o receber nem com o dar. Nenhuma esperança e nenhum medo. Esse é o desenvolvimento de prajna, o "conhecimento transcendente", a capacidade de ver as situações como são.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016, p. 121-122.

Chögyam Trungpa Rinpoche - A compaixão é a atitude final da riqueza

Compaixão nada tem a ver com conquistar algo. É espaçosa e muito generosa. Quando uma pessoa manifesta a verdadeira compaixão, não sabe se está sendo generosa com os outros ou consigo mesma, porque a compaixão é uma generosidade ambiental, sem direção, sem "para mim" e sem "para eles". É cheia de alegria, de uma alegria que existe espontaneamente, uma alegria constante no sentido de confiança, no sentido de que essa alegria contém uma enorme riqueza, um tesouro.

Poderíamos dizer que a compaixão é a atitude final da riqueza: uma atitude contra a pobreza, uma guerra declarada à escassez. Contém toda a sorte de qualidades heroicas, atraentes, positivas, visionárias, expansivas. E implica reflexão em ampla escala, um modo mais livre e expansivo de relacionar-se consigo mesmo e com o mundo. É precisamente por isso que ao segundo yana se dá o nome de "Mahayana", o "grande veículo". Seria a atitude de quem já nasceu fundamentalmente rico e não daquele que ainda precisa enriquecer. Sem esse tipo de confiança, a meditação não pode, de modo algum, ser transformada em ação.

A compaixão convida automaticamente ao relacionamento com as pessoas, porque elas já não significam um desgaste de energia para você. Elas recarregam sua energia, uma vez que, no processo de relacionar-se com elas, você reconhece a sua riqueza, o seu tesouro. Nessas circunstâncias, se há tarefas difíceis para cumprir, tais como lidar com pessoas ou situações da vida, você não se sentirá como se lhe faltassem recursos. Toda vez que você encara uma tarefa difícil, ela se apresenta como uma ótima oportunidade para demonstrar sua riqueza, seus recursos. Não há nenhum sentimento de pobreza nesse modo de vida.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016, p. 120-121.

14 de abril de 2019

Chögyam Trungpa Rinpoche - Meditação é o ato contínuo de ser amigo de si mesmo

Examinamos e vivenciamos o auto-engano plenamente. Andamos carregando um fardo muito pesado, como a tartaruga carrega sua carapaça. Tentamos continuamente fechar-nos nessa carapaça, tentando, com agressão e pressa, verdadeiramente chegar a algum lugar. Precisamos abrir mão de toda a pressa e agressividade, de toda espécie de exigências. Precisamos desenvolver alguma compaixão por nós mesmos, e aí inicia-se a via aberta.

Nesse ponto, é necessário discutir o significado de "compaixão", que é a chave da via aberta e sua atmosfera básica. A melhor e mais correta maneira de apresentar a ideia de compaixão é em termos de clareza, clareza essa que é fundamentalmente calorosa. Nessa fase, sua prática de meditação é o ato de confiar em si mesmo. À medida que a prática ganha destaque em meio às atividades da vida cotidiana, você passa a confiar em si mesmo e a assumir uma atitude compassiva. Nesse sentido, a compaixão não é ter pena de alguém. É essa base calorosa. Por mais espaço e claridade que haja, há também esse calor, uma agradável sensação de que coisas positivas estão acontecendo em nós constantemente. Seja lá o que você estiver fazendo, isso não é visto como algo que arrasta você mecanicamente para uma meditação autoconsciente, mas a meditação torna-se uma coisa espontânea e prazerosa. É o ato contínuo de ser amigo de si mesmo.

Assim, tendo estabelecido amizade consigo, não se pode simplesmente guardar essa amizade dentro de si - é preciso um escape, que é o relacionamento com o mundo. Nessas condições, a compaixão passa a ser uma ponte com o mundo exterior. A confiança e a compaixão em relação a si mesmo traz inspiração para você dançar com a vida, comunicar-se com as energias do mundo.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016, p. 119.

Sogyal Rinpoche - Treinar a mente não é subjugá-la

“Treinar” a mente não significa, de modo algum, subjugá-la pela força ou submeter-se a uma lavagem cerebral. Treinar a mente é, antes de tudo, ver de maneira direta e concreta como ela funciona, um conhecimento que você tira dos ensinamentos espirituais e da experiência pessoal na prática da meditação. Aí você pode usar a compreensão para domar a mente e trabalhar habilmente com ela, fazendo-a mais e mais dócil, de modo a poder tornar-se mestre da sua própria mente, empregando-a em seu potencial mais amplo e benéfico.

fonte: "O livro tibetano do viver e do morrer", Ed. Palas Athena, 1999.

Sogyal Rinpoche - A meditação é nada senão habituar-se com a prática da meditação

A meditação é nada senão habituar-se com a prática da meditação. (...) A meditação não é esforço, mas naturalmente assimilar-se nela. (...) Mais do que observar a respiração, deixe-se gradualmente identificar com ela, como se você se transformasse nela.

fonte: "O livro tibetano do viver e do morrer", Ed. Palas Athena, 1999.

Sogyal Rinpoche - Inspiração para meditação

INSPIRAÇÃO

Disse aqui que a meditação é a estrada para a iluminação e o maior empenho da nossa vida. Todas as vezes que falo a respeito da meditação para meus alunos, sublinho a necessidade de praticá-la com disciplina resoluta e orientada devoção; ao mesmo tempo, sempre lhes digo como é importante fazer isso do modo mais criativo e inspirado possível. Em certo sentido a meditação é uma arte, e você deve trazer até ela o deleite do artista e a fertilidade da invenção.

Torne-se tão engenhoso no inspirar-se para obter sua paz quanto você é nas andanças neuróticas e competitivas do mundo. Há muitas maneiras de abordar a meditação de forma tão jovial quanto possível. Você pode usar a música que mais o comove para abrir seu coração e sua mente. Pode colecionar trechos de poesia, citações ou passagens de ensinamentos que durante anos o sensibilizaram, tendo-os perto de você para elevar seu espírito. (...) Você também pode usar reproduções de quadros que lhe transmitam o sentido do sagrado, colocando-os na parede de sua sala. Ouça uma fita cassete com ensinamentos de um grande mestre, ou um cântico sagrado. Pode fazer do lugar em que medita um paraíso simples, com uma flor, um bastão de incenso, um candeeiro, a fotografia de um mestre iluminado, ou a imagem de uma deidade ou um buda. Você pode transformar o mais comum dos quartos num espaço íntimo sagrado, num ambiente onde todos os dias você irá encontrar-se com o seu verdadeiro eu, na feliz e alegre cerimônia de um velho amigo que acolhe outro.

E se achar que a meditação não chega fácil à sua sala na cidade, seja criativo e saia para a natureza. Ela é sempre uma fonte infalível de inspiração. Para acalmar sua mente, dê um passeio no parque ao nascer do sol, ou observe o sereno numa rosa do jardim. Deite-se na grama e contemple o céu, deixando sua mente se expandir em sua amplidão. Deixe que o céu de fora desperte o céu que há dentro de você. Entre num riacho e misture sua mente à música da água; torne-se um com essa sonoridade incessante. Sente-se ao lado de uma cascata e deixe seu riso purificador refrescar-lhe o espírito. Caminhe numa praia e receba o vento do mar, em cheio, doce, em seu rosto. Comemore e use a beleza do luar para equilibrar sua mente. Sente-se junto a um lago ou num jardim e, respirando tranqüilamente, deixe sua mente quedar-se silenciosa enquanto a lua sobe majestosa e lenta na noite sem nuvens.

Tudo pode ser usado como um convite à meditação. Um sorriso, um rosto no metrô, a visão de uma pequenina flor crescendo numa rachadura do calçamento, um belo traje numa vitrina, o modo como o sol banha vasos de flores no peitoril de uma janela. Esteja desperto para qualquer sinal de beleza e graça. Ofereça cada alegria, mantenha-se desperto em todos os momentos para "as novidades que sempre estão chegando do silêncio".

Aos poucos você se transformará no mestre de sua própria bem-aventurança, o alquimista de sua própria alegria, com todas as espécies de medicamento sempre à mão para elevar, incentivar, iluminar e inspirar cada respiração e movimento seus. O que é um grande praticante espiritual? É alguém que vive sempre em presença do seu próprio eu verdadeiro, alguém que encontrou e usa sempre as fontes da inspiração profunda. Como o moderno escritor inglês Lewis Thompson escreveu: "Cristo, poeta supremo, viveu a verdade tão apaixonadamente que cada gesto seu, a uma só vez Ato puro e Símbolo perfeito, personifica o transcendente".

É para personificar o transcendente que estamos aqui.

fonte: "O livro tibetano do viver e do morrer", Ed. Palas Athena, 1999.

Sogyal Rinpoche - Meditar é interromper por completo o modo como normalmente operamos

Via de regra desperdiçamos nossas vidas distraídos do nosso eu verdadeiro, numa atividade sem fim; a meditação é o caminho para trazer-nos de volta a nós mesmos, onde podemos realmente experimentar e provar nosso ser completo, além de todos os padrões habituais. Nossas vidas são vividas em intensa e ansiosa luta, num turbilhão de velocidade e agressão, competindo, apegando-nos, possuindo e conquistando, sobrecarregando-nos sempre de atividades irrelevantes e de preocupações.

A meditação é o exato oposto disso. Meditar é interromper por completo o modo como “normalmente” operamos, em benefício de um estado isento de cuidados e tensões em que inexiste competição, desejo de posse ou apego a qualquer coisa, sem a luta intensa e ansiosa, sem fome de adquirir. Um estado desprovido de ambição onde não cabe nem o aceitar nem o rejeitar, nem a esperança nem o medo, um estado em que lentamente começamos a libertar-nos das emoções e dos conceitos que nos aprisionaram, até chegarmos a um espaço de simplicidade natural.

fonte: "O livro tibetano do viver e do morrer", Ed. Palas Athena, 1999.

Chögyam Trungpa Rinpoche - A compaixão é a atmosfera aberta na qual prajna enxerga

Como tivemos ocasião de discutir na palestra sobre a ação do bodhisattva, prajna é um estado muito claro, preciso e inteligente de ser. Possui uma qualidade aguçada, a capacidade de penetrar e revelar situações. A compaixão é a atmosfera aberta na qual prajna enxerga. É uma aberta consciência de situações, que, instruída pelo olho de prajna, desencadeia a ação. A compaixão é muito poderosa; precisa, porém, ser dirigida pela inteligência de prajna, assim como a inteligência precisa da atmosfera da abertura básica da compaixão. As duas precisam ocorrer simultaneamente.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Cultrix.

Chögyam Trungpa Rinpoche - Forma é apenas forma e o vazio é apenas vazio

Por fim, chegamos à conclusão de que forma é apenas forma e o vazio é apenas vazio, o que foi descrito no sutra como a visão de que a forma não é mais do que vazio, que o vazio não é mais do que forma - são inseparáveis. Vemos que a busca da beleza ou do significado filosófico da vida é apenas um modo de justificarmos, dizendo que as coisas não são tão más quanto supomos que sejam. As coisas são tão más quanto supomos que sejam! A forma é forma, o vazio é vazio, as coisas são exatamente o que são e não precisamos vê-las à luz de qualquer raciocínio mais profundo. Finalmente, descemos à terra, vemos as coisas tais como são. Isso não significa ter uma inspirada visão mística com arcanjos, querubins e músicas suaves. As coisas são vistas como elas são, em suas próprias características. Nesse caso, portanto, shunyata é a ausência total de conceitos ou véus de qualquer espécie, a ausência até da conceituação de que "a forma é vazia" e de que "o vazio é forma". É uma questão de ver o mundo de modo direto, sem aspirar "maior" consciência, significação ou profundidade. É perceber as coisas de maneira direta e literalmente, como elas são por si mesmas.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016.

Chögyam Trungpa Rinpoche - Meditação, ausência de agressão e pressa, compaixão

P: De onde vem a atitude de calor?

R: Da ausência de agressão.

P: Mas não é essa a meta?

R: Tanto quanto o caminho, a ponte. Não moramos na ponte. Caminhamos sobre ela. Na experiência da meditação há automaticamente algum sentido de ausência de agressão, que é definição de Dharma. Define-se Dharma como "ausência de paixão" ou "impassibilidade" e a impassibilidade supõe a ausência de agressão. Se formos apaixonados, estaremos querendo obter alguma coisa rapidamente para satisfazer o nosso desejo. Quando não há desejo para ser satisfeito, não há agressão nem pressa. Assim sendo, quando uma pessoa pode relacionar-se realmente com a simplicidade da prática da meditação, haverá automaticamente ausência de agressão. Porque não há pressa, podemos nos permitir relaxar. Porque podemos nos permitir relaxar, podemos nos permitir fazer companhia a nós mesmos, podemos tranqüilamente amar a nós mesmos, ser amigos de nós mesmos. Assim, pensamentos, emoções, o que quer que ocorra na mente, acentuam constantemente o ato de estabelecer amizade com nós mesmos.

Outrossim, podemos dizer que a compaixão é a qualidade terrena da prática da meditação, a sensação de terra e a solidez. A mensagem do calor compassivo resume-se em não ter pressa e em nos relacionarmos com cada situação tal qual ela é. O nome do índio americano "Touro Sentado" parece um perfeito exemplo disso. "Touro Sentado" é sólido e orgânico. Estamos, com efeito, realmente presentes e despreocupados.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Cultrix.

Chögyam Trungpa Rinpoche - Todo ato de nossa vida pode conter simplicidade e precisão

Há inúmeros detalhes de ação envolvidos na simplicidade e na agudeza de estar aqui agora, neste momento. (...) Quando um ato é simples, você começa a compreender sua exatidão. Começa a perceber que tudo o que faz cotidianamente é belo e significativo. (...) cada movimento possui sua dignidade. Esquecemo-nos há muito tempo que as atividades podem ser simples e precisas. Todo ato de nossa vida pode conter simplicidade e precisão, e desse modo pode possuir enorme beleza e dignidade. (...) Podemos fazer as coisas de modo digno e apropriado. Basta deixar espaço. (...) A prática de ver a precisão das situações a cada momento, através de métodos como a consciência do andar, chama-se meditação shamata.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016.

Chögyam Trungpa Rinpoche - Toda prática de meditação baseia-se essencialmente na situação do momento presente

Toda prática de meditação baseia-se essencialmente na situação do momento presente, aqui e agora, e significa trabalhar com esta situação, com este atual estado da mente. Qualquer prática de meditação que diga respeito à superação do ego está focada no momento presente. Eis por que esse é um modo de viver muito eficaz. Se você estiver completamente consciente do seu atual estado de ser e da situação à sua volta, coisa nenhuma poderá lhe escapar. Pode-se usar várias técnicas de meditação para facilitar esse tipo de consciência, mas essas técnicas são simplesmente um modo de sair do ego. A técnica é como um brinquedo dado a uma criança. Quando a criança cresce, o brinquedo é posto de lado. Entretanto, a técnica se faz necessária para desenvolver a paciência e impedir que se sonhe com a "experiência espiritual". Toda prática deve basear-se na relação entre você e o agora.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016.


Chögyam Trungpa Rinpoche - Luta é raiz do sofrimento

Tendo nos tornado intensamente conscientes de nossa insatisfação, começamos a buscar uma razão para ela, sua origem. Examinando nossos pensamentos e ações, descobrimos que estamos sempre lutando para nos manter e destacar. Compreendemos que a luta é a raiz do sofrimento. (...) Começamos a compreender que existe uma qualidade sã e desperta dentro de nós que, de fato, só se manifesta na ausência de luta. (...) Basta abandonarmos o esforço por garantir segurança e solidez para nós mesmos e o estado desperto se apresenta.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016.

Chögyam Trungpa Rinpoche - Preferimos mudar nossas vidas a usá-las no momento presente, como parte da prática

Geralmente, tendemos a exagerar na preparação. (...) Dizemos "depois que eu tiver ganhado muito dinheiro, irei para algum lugar a fim de estudar, meditar e tornar-me um sacerdote" ou seja lá o que gostaríamos de ser. Porém, nunca o fazemos no momento. Sempre falamos em termos de "quando eu fizer alguma coisa, então..." Sempre planejamos demais. Preferimos mudar nossas vidas a usá-las no momento presente, como parte da prática, e essa hesitação de nossa parte cria uma infinidade de contratempos na prática espiritual.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016.


Chögyam Trungpa Rinpoche - A meditação não é uma questão de focar uma única coisa

A meditação, portanto, não é uma questão de focar uma única coisa, mas estar desperto para toda a situação, bem como experimentar a simplicidade dos acontecimentos.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016.

Thich Nhat Hahn - Sobre o Mantra da Prajnaparamita

Foi isto que o bodhisattva proferiu. Quando escutamos este mantra, deveríamos nos conduzir àquele estado de atenção, de concentração, de tal forma que possamos receber a força emanada pelo Bodhisattva Avalokitesvara. Nós não recitamos o Sutra do Coração como quem canta uma canção, ou apenas com o nosso intelecto. Se você praticar a meditação sobre a vacuidade, se você penetrar a natureza do interser com todo o seu coração, seu corpo e sua mente, você alcançará um estado de grande concentração. Se você pronunciar o mantra então com todo o seu ser, o mantra terá poder e você será capaz de comunicar-se realmente, comungar realmente com Avalokitesvara, e você será capaz de transformar a si mesmo na direção da iluminação. Este texto não deve ser apenas cantado, ou ser colocado num altar para veneração. Ele foi dado para nós como uma ferramenta para trabalhar pela libertação de todos os seres. É como uma ferramenta para a lavoura, dada a nós para que possamos cuidar a terra. Este é o presente de Avalokita.

fonte: "O coração da compreensão", Ed. Bodigaya, 2000, p. 75-76.

Thich Nhat Hahn - Há hastes ligando-nos a todas as coisas no cosmos, e consequentemente nós podemos existir

Nós não temos mais uma haste ligando-nos a nossa mãe, mas quando estávamos no seu útero, nós tínhamos uma haste muito longa, um cordão umbilical. O oxigênio e a nutrição que necessitávamos vinha a nós através daquela haste. Infelizmente no dia que chamamos de nosso aniversário, ela foi cortada e nós recebemos a ilusão de que somos independentes. Isto é um engano. Nós continuamos a depender de nossa mãe por um tempo muito longo, e também tivemos muitos outras mães. A Terra é a nossa mãe. Nós temos muitíssimas hastes ligando-nos à nossa mãe Terra. Há uma haste ligando-nos com a nuvem. Se não houver nuvem, não haverá água para bebermos. Nós somos feitos de pelo menos setenta por cento de água e a haste entre a nuvem e nós está realmente ali. Este também é o caso com o rio, a floresta, o lenhador e o agricultor. Há centenas de milhares de hastes ligando-nos a todas as coisas no cosmos, e consequentemente nós podemos existir. Você vê o elo entre você e eu? Se você não estiver aí, eu não estarei aqui. Isto é certo. Se você ainda não vê isto, olhe mais profundamente e tenho certeza de que você vai ver. Como eu disse, isto não é filosofia. Você realmente tem de ver.

fonte: "O coração da compreensão", Ed. Bodigaya, 2000, p. 42-43.

Thich Nhat Hahn - Por ser vazia, a forma é possível

Pelo fato da forma ser vazia, a forma se torna possível. Na forma nós encontramos tudo o mais - sentimentos, percepções, formações mentais, e consciência. "Vacuidade" significa destituído de um 'self' separado. A vacuidade é cheia de todas as coisas, repleta de vida. A palavra vacuidade não deveria nos assustar. É uma palavra magnífica. Ser vazio não significa ser não-existente. Se a folha de papel não fosse vazia, como poderiam os raios do sol, o lenhador e a floresta vir dentro dela? Como poderia ela ser uma folha de papel? A xícara, para poder estar vazia, precisa estar lá. Forma, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência, para poderem ser vazios de um 'self' separado, têm de estar lá.

A vacuidade é a base de todas as coisas. Graças à vacuidade, tudo é possível. Esta é uma declaração feita por Nagarjuna, o filósofo budista do segundo século. A vacuidade é realmente um conceito bastante otimista. Se eu não for vazio, eu não posso estar aqui. E se você não for vazio, você não pode estar aí. Porque você está aí, eu posso estar aqui. Este é o verdadeiro significado da vacuidade. A forma não tem uma existência separada. Avalokita quer que nós compreendamos este ponto.

Se não formos vazios, nos tornamos um bloco de matéria. Não podemos respirar, não podemos pensar. Estar vazio significa estar vivo, inspirar e expirar. Não podemos estar vivos se não formos vazios. Vacuidade é impermanência, é mudança. Nós não deveríamos reclamar da impermanência, porque sem ela nada é possível.

fonte: "O coração da compreensão", Ed. Bodigaya, 2000, p. 29-31

Thich Nhat Hahn - 5 skandas, 5 rios fluindo juntos em nós, vazios de um self separado

Os cinco skandhas que poderíamos traduzir para o português como cinco montes, ou cinco agregados, são os cinco elementos que perfazem um ser humano. Estes cinco elementos fluem como um rio em cada um de nós. De fato, eles são na verdade cinco rios fluindo juntos em nós: o rio da forma, que significa o nosso corpo; o rio dos sentimentos; o rio das percepções; o rio das formações mentais e o rio da consciência. Eles estão sempre fluindo em nós. Então, de acordo com Avalokita, quando ele olhou profundamente dentro da natureza deste cinco rios, de repente ele viu que todos eles eram vazios. E, se perguntarmos, "Vazio de quê?" ele tem de responder. E foi isto o que ele disse: "Eles são vazios de um 'self' separado". Isto quer dizer que nenhum destes cinco rios pode existir sozinho, por si mesmo. Cada um dos cinco rios tem de ser feito pelos outros quatro. Eles têm de co-existir, eles têm de interser com todos os demais.

fonte: "O coração da compreensão", Ed. Bodigaya, 2000, p. 21.

Thich Nhat Hahn - Compreensão é como água fluindo numa correnteza

A Perfeita Compreensão é 'prajnaparamita'. A palavra "sabedoria" é comumente empregada para traduzir 'prajna', mas eu penso que sabedoria de alguma forma não é capaz de passar o significado adequado. Compreensão é como água fluindo numa correnteza. Sabedoria e conhecimento são sólidos e podem bloquear nossa compreensão. No Budismo, o conhecimento é considerado um obstáculo à compreensão. Se tomarmos algo como sendo a verdade, podemos nos apegar a isto de tal maneira que mesmo se a verdade vier e bater à nossa porta, nós não vamos querer deixá-la entrar. Nós temos de ser capazes de transcender nosso conhecimento prévio do mesmo modo como escalamos uma escada. Se estivermos no quinto degrau e pesarmos estar muito elevados, não há esperança de nós darmos o passo para o sexto degrau. Nós devemos aprender a transcender as nossas próprias visões. A compreensão, como a água, pode fluir, pode penetrar. Pontos de vista, conhecimento, e até mesmo sabedoria são sólidos, e podem bloquear o caminho da compreensão.

fonte: "O coração da compreensão", Ed. Bodigaya, 2000, p. 19.

Thich Nhat Hahn - Nós não podemos conceber o nascimento de coisa alguma. Há apenas continuação

Nós não podemos conceber o nascimento de coisa alguma. Há apenas continuação. Por favor, olhe para trás ainda além e você verá que você não somente existia no seu pai e na sua mãe, mas você também existia em seus avós e seus bisavós. Quando eu olho mais profundamente, eu vejo que, numa vida anterior, eu fui uma nuvem. Isto não é poesia, isto é ciência. Porque eu digo que numa vida anterior eu fui uma nuvem? Porque ainda sou uma nuvem. Sem a nuvem, eu não posso estar aqui. Eu sou a nuvem, o rio, e o ar neste exato momento, e assim eu sei que no passado fui uma nuvem, um rio e o ar. E eu fui uma rocha. Eu fui os minerais na água. Isto não é uma questão de crença na reencarnação. Isto é a história da vida na terra. Nós já fomos gás, raios de sol, água, fungos e plantas. Nós já fomos seres unicelulares. O Buda disse que numa de suas vidas prévias ele tinha sido uma árvore. Ele fora um peixe e um cervo. Não se trata de superstição. Cada um de nós já foi uma nuvem, um cervo, um pássaro, um peixe, e continuamos a ser estas coisas, não apenas em vidas anteriores.

Não é este o caso, de jeito nenhum, com o nascimento. Nada pode nascer e, também, nada pode morrer. Foi isto o que disse Avalokita. Você acha que uma nuvem pode morrer? Morrer significa que de alguma coisa você se tornou nada. Você acha que nós podemos fazer de alguma coisa um nada? Vamos voltar para a nossa folha de papel. Nós podemos ter a ilusão de que para destruí-la basta acendermos um fósforo e queimá-la. Mas, se nós queimamos uma folha de papel, parte dela virará fumaça e a fumaça subirá e continuará a existir. O calor produzido na combustão do papel irá entrar no cosmos e penetrar outras coisas, pois o calor será a próxima vida do papel. As cinzas formadas se tornarão parte do solo e a folha de papel, em sua próxima vida, poderá ser uma nuvem e uma rosa ao mesmo tempo. Nós temos de estar muito cuidadosos e atentos para percebermos que esta folha de papel nunca nasceu, e que ela nunca morrerá. Ela poderá assumir outras formas de ser, mas não somos capazes de transformá-la em um nada absoluto.

Tudo é assim, mesmo você e eu. Nós não estamos sujeitos ao nascimento e à morte. Um mestre Zen poderia dar a um estudante um tema de meditação do tipo: “Como era seu rosto antes dos seus pais nascerem?” Este é um convite para partir na jornada do reconhecimento de si mesmo. Se você se sair bem, você poderá ver as suas vidas prévias bem como as suas vidas futuras. Por favor, lembre-se de que não estamos falando sobre filosofia, nós estamos falando sobre realidade. Olhe para sua mão e pergunte a si mesmo: “Desde quando minha mão tem estado por aí?” Se eu olhar profundamente na minha mão, eu poderei ver que ela tem estado por aí há muito tempo, mesmo mais de 300.000 anos. Eu verei muitas gerações de ancestrais nela, não só no passado, mas no momento presente, ainda vivas. Eu sou apenas a continuação. Eu nunca morri antes. Se eu tivesse morrido mesmo uma única vez, como a minha mão poderia estar aqui ainda?

O cientista francês Lavoisier, disse: "Nada é criado e nada é destruído". É exatamente o mesmo que diz o Sutra do Coração. Mesmo os melhores cientistas contemporâneos não podem reduzir algo tão pequeno como um grão de poeira ou um elétron ao nada. Uma forma de energia só pode se transformar em outra forma de energia. Uma coisa nunca pode se tornar nada, e isto inclui o grão de poeira.

fonte: "O coração da compreensão", Ed. Bodigaya, 2000, p. 39.

Lama Padma Samten - Cultura de paz

CULTURA DE PAZ

Dentro do budismo, a responsabilidade universal e a cultura de paz surgem como meios hábeis extraordinários para o benefício de todos os seres – a começar por nós mesmos. Para nós budistas, a melhor forma de relacionamento com todos os seres é a prática da bondade, amor e compaixão. Cuidar dos outros é a única forma de garantir o nosso próprio bem-estar, pois todos estão interligados, dependemos uns dos outros.

Todos os seres buscam a felicidade e tentam evitar o sofrimento. Não se trata de uma característica exclusiva dos humanos, ela é identificada também nos animais e plantas. Todos os seres buscam sempre o que possa garantir sua sobrevivência da melhor maneira possível e tentar evitar as ameaças. Na existência condicionada, tudo tem início, meio e fim, tudo é impermanente. Como tudo está sempre mudando, surge o conceito de positivo e negativo. Vemos certas coisas como benéficas para nossa busca pela felicidade, e outras como prejudiciais, capazes de gerar sofrimento. E muitas vezes o que era positivo torna-se negativo depois de um tempo, e vice-versa.

Do ponto de vista convencional, o budismo aceita a noção de positivo e negativo. Mas, do ponto de vista absoluto, existe a compreensão de que nossa natureza não pode ser afetada pelas circunstâncias que afetam nossas identidades e nosso corpo. Portanto, do ponto de vista da natureza última, não há nada que nos derrube, nos afete, nos destrua.

Também não consideramos que as pessoas podem ser divididas entre boas e más, nem trabalhamos com o conceito de culpa, de que as pessoas devam ser responsabilizadas diretamente por suas ações negativas. Trabalhamos com o conceito de que, se andarmos de maneira apropriada, colheremos o que desejamos: felicidade e segurança.

Essa é a perspectiva geral dos ensinamentos. Vamos ter ensinamentos provisórios e outros definitivos. Os ensinamentos relativos e direcionados à cultura de paz serão, pelo menos no início, provisórios. Dizem respeito ao mundo condicionado, onde, esquecidos do que somos verdadeiramente, nos ligamos a um corpo e dizemos: "Eu sou este corpo". Ainda que nosso corpo mude, continuamos a dizer: "Eu sou este corpo". Também dizemos: "Eu sou a minha identidade". Apresentamo-nos com nosso cartão de visitas: "Eu sou isso". Ainda que tenhamos muitos diferentes cartões, e tenhamos nos apresentado de formas diferentes no passado, dizemos: "Agora sou isso". E talvez não tenhamos nenhuma desconfiança de que não somos realmente aquilo.

Desse modo, se nossa identidade vai mal, nos sentimos muito aflitos; se nosso corpo está mal, nos sentimos muito aflitos, e nos guiamos por essas aflições. Acreditamos que, se seguirmos o que parece favorável e escaparmos do que parece desfavorável, atingiremos a felicidade. Vocês devem ter percebido que, dentro dessa perspectiva, ninguém obteve sucesso até hoje. Certas pessoas podem ter obtido muitos resultados, mas nunca o pleno sucesso.

Isso porque giramos dentro do que chamamos de experiência cíclica, sem solução. Buscamos a felicidade em coisas impermanentes, que inevitavelmente chegam ao fim e, quando isso acontece, vem o sofrimento. O budismo ensina que não adianta procurar a felicidade permanente no samsara, na existência condicionada. Precisamos ir além, procurar em outro lugar.

AS DIFICULDADES

Nesse momento, estamos imersos em uma versão de cultura de paz que apresenta problemas. Temos graves dificuldades na questão ambiental, tanto na exploração dos recursos naturais como na poluição. Temos também graves falhas em termos de indivíduos e sociedade. Estamos em uma cultura que permite e eventualmente estimula várias coisas negativas, desde hábitos alimentares nocivos e consumo de substâncias tóxicas até questões como corrupção e violência.

Assim, o nosso grande barco da cultura de paz tem furos no casco e está fazendo água. Algumas pessoas acreditam que os furos estão permitindo a entrada de um volume de água que as bombas não estão dando conta, e o barco está afundando. Para elas, esse processo não tem como ser contido, ou seja, a sustentabilidade da vida no planeta não tem solução. Outras pessoas vão dizer: há soluções. Outros ainda dizem: havendo ou não solução, farei a minha parte. Eu me incluo entre essas. Se houver solução, espero contribuir de alguma forma, e se não, já estamos salvos: é apenas um barco, há o grande oceano, nossa natureza não será efetivamente afetada, seja pelo que for.

Nossa cultura de paz precisa de alguns ajustes. Precisamos fechar os furos do casco do barco. Para fazer isso, já temos tudo que precisamos: uma natureza ilimitada e luminosa, capaz de construir e mudar as coisas, e a motivação para alcançar a felicidade e nos livrarmos do sofrimento. Precisamos entender que o barco é um só, e que vamos flutuar ou afundar com ele, todos juntos. Quando percebemos que as coisas que estamos fazendo para ter felicidade e evitar o sofrimento não funcionam, ficamos dispostos a mudar. Mas mudar como?

Dentro da visão limitada, de certo e errado, temos o hábito de julgar e culpar. E aí brigamos uns com os outros. No caso dos furos do caso do nosso navio, as pessoas podem se dividir em grupos e trocar acusações mútuas: "Foram vocês que fizeram o furo!", "Aquele grupo deveria ser jogado da amurada!" A noção de exclusão está muito arraigada dentro de nós, temos a tendência de ver todos que não são iguais como inimigos. A história das civilizações está repleta de exemplos de nações que consideravam os outros povos bárbaros. Até hoje é assim.

No budismo, não trabalhamos com a noção de que exista um centro do mal, ou um complô para afundar o navio, ou seres que desejem infelicidade e sofrimento. Por isso, não vamos querer excluir ninguém. Os comportamentos não são perfeitos, mas podem mudar. Todos temos a natureza ilimitada, temos receitas que funcionam e outras que não funcionam, e então temos que aprimorar os nossos processos.

AS SOLUÇÕES

Dentro da noção de responsabilidade universal, o que vamos fazer? Vamos cuidar para que nossas ações sejam menos agressivas e mais positivas. Quando agimos assim, ficamos mais felizes. Se pensamos que trazer benefício aos outros é um problema, e que arrancar as coisas dos outros ou jogá-los pela amurada é melhor, o casco do barco começa a se romper. A sustentabilidade fica afetada.

As pessoas autocentradas e que tentam arrancar coisas dos outros ficam aflitas, pois sentem-se cercadas de inimigos. Elas de fato cultivam inimizades e negatividade, e isso vai gerando isolamento, dificuldade para conviver com os outros e consigo mesmo. A agressividade torna-se um hábito. Os amigos e parentes tentam ajudar, mas é muito difícil. Vocês provavelmente já devem ter procurado ajudar pessoas que estão afundando no meio das aflições. É complicado porque, para nós, não há razão nenhuma para aquela aflição, mas o ser aflito está povoado de condições negativas e não vê solução.

Por outro lado, se desenvolvermos relações positivas com os outros, nos sentiremos mais felizes. Teremos identidades melhores, desenvolveremos pensamentos e atitudes positivas, vamos nos alimentar melhor, ter melhor saúde, tudo melhora. Desenvolver relações positivas não significa que vamos concordar com tudo. Em certos casos, precisamos desenvolver uma posição firme contra negatividades. Um bom exemplo é a educação de nossos filhos: deixar que façam tudo que quiserem jamais seria uma relação positiva.

Essa compreensão é a compreensão da cultura de paz, e ela tem uma recomendação específica e prática: devemos estabelecer relações positivas conosco, com os outros seres, com o ambiente social e com o ambiente natural. A qualidade básica por trás dessa recomendação é a estabilidade inseparável do conceito de liberdade. Nesse, liberdade significa não ser arrastado pelas situações, mas poder dirigir a própria ação com lucidez.

Se uma situação negativa nos aflita e perturba, perdemos a lucidez, não conseguimos dirigir nossa ação, somos levados pela responsividade. Quando mantemos a estabilidade, não somos afetados, mantemos nossa liberdade e lucidez, não adotamos atitudes de exclusão e revide.

Algumas pessoas conseguem mover-se em meio à negatividade sem atitudes de exclusão e de revide por terem uma fé profunda, e outras por terem uma lucidez muito grande. O melhor é juntar fé e lucidez. Nesse caso, temos a certeza intuitiva da fé associada ao raciocínio lúcido.

Esse é o conceito de cultura de paz. Poderíamos ensiná-lo aos nossos filhos nas escolas, mas a melhor forma de fazê-lo é viver esse princípio. Nosso objetivo é que as pessoas possam refletir sobre isso. Que elas percebam que podem se recriar como pessoas melhores adotando outra maneira de se relacionar consigo mesmas, com os demais seres, com a sociedade e com o ambiente. Vivendo na cultura de paz, vemos todos os seres como aliados: como nós, eles querem felicidade e não querem sofrimento. Não excluímos os seres imersos em negatividade, nem sentimos aversão por eles.

fonte: "A roda da vida como caminho para a lucidez", Ed. Peirópolis, 2010, p. 151-155.

Lama Padma Samten - Refúgio

No budismo, tomamos refúgio para dispor de um referencial interno que nos mantenha estáveis e a salvo, para que não percamos os ensinamentos quando as condições negativas se manifestarem. Embora tenhamos a condição humana preciosa e a conexão com uma linhagem de transmissão dos ensinamentos, nossa posição é frágil, pois somos ameaçados pela impermanência e temos a estrutura de carmas primários que podem se manifestar sob certas condições.

Na ausência da possibilidade de tomar refúgio, oscilamos. Tomar refúgio significa a capacidade de direcionar nossa ação dentro da existência condicionada. Significa que somos livres do carma e das identidades, que podemos exercer nossa liberdade. Tomar refúgio em quê? Na natureza tal como ela é. Não é tomar refúgio em alguém, mas na natureza ilimitada.

Porém, tradicionalmente, tomamos refúgio em um lama. Acontece que o conceito de natureza ilimitada é por demais abstrato para a maioria das pessoas. Assim, o lama é um representante da natureza ilimitada. Por isso dizemos: "Tomo refúgio no lama, que é as Três Joias". Quando o lama desaparecer, estaremos refugiados nas Três Joias. Não há diferença. Essa é a forma adequada de entendimento. Não tomamos refúgio na pessoa do lama, mas nas Três Joias, que tentamos ver através daquele ser à nossa frente. Se não conseguirmos ver, não há como tomar refúgio nelas. Podemos até criar uma relação pessoal com o lama, mas isso não é refúgio. Refúgio é quando o Buda interno, nossa natureza de sabedoria, começa a aflorar, e por isso somos capazes de ver as Três Joias no lama. Se não conseguirmos ver nele essas qualidades, vemos um ser comum.

Um lama em carne e osso ajuda porque ele fala, tem maior proximidade. Como temos dificuldade de localizar o lama interno, é necessário o surgimento de um lama externo, que entra em ressonância com a nossa natureza interna. O refúgio no lama externo é o caminho que nos leva ao ponto último da natureza ilimitada; esse caminho se chama Guru Yoga. Não se trata de um caminho de aprisionamento a alguém, mas um caminho que usa a liberdade para atingir a liberdade final. No ponto final de Guru Yoga, encontramos o Buda interno como nossa natureza incessante e sempre presente.

Olhamos as Três Joias, e tomamos refúgio no Buda como expressão da nossa natureza, daquilo que não nasce, não morre, que está além de espaço e tempo, nome e forma. Quando, nos ensinamentos mais profundos, contemplamos isso, vemos esse Buda como a nossa natureza incessante, sempre presente. Como percebemos que ela é incessante? Podemos ter sonhos, aflições, podemos dormir e ter várias situações no cotidiano. Estamos sempre vivendo alguma coisa. Essa é a explicação mais fácil da natureza incessante; o sonho é incessante; o conteúdo do sonho não é importante, o que importa é ver o processo luminoso, o processo de atribuição de significados, de identidades, operando sem cessar. Isso é a continuidade. A palavra tantra é traduzida às vezes como continuum. Há uma continuidade, é quase fácil de perceber. É claro que precisamos associar essa continuidade à noção de vacuidade, porque é uma continuidade de sonho. O que experimentamos pode ser pensado de diferentes maneiras, mas estamos sempre experimentando uma versão, um aspecto quase onírico. Estamos sempre ao meio de um sonho.

Por isso dizemos que toda a realidade é luminosa, no sentido de que está ligada inexoravelmente a uma interpretação que brota inseparável de nossa estrutura interna. O mundo externo brota inseparável de nossas estruturas de carma. Aquilo que brota dentro de nós, vemos brotando fora, por meio da coemergência. Desse modo percebemos que há algo incessante.

No budismo, dizemos que as experiências não cessam com a morte; outras tradições religiosas dizem o mesmo: uns vão a julgamento, outros para mundos celestiais, outros para o inferno. O importante é que, qualquer que seja o ambiente, há uma continuidade de consciência. É a noção de tantra, um fio que nos vai levando e não é interrompido.

Dizemos que essa natureza é incessante. Estamos falando do Buda em um sentido muito amplo. Essa natureza incessante é luminosa, apresenta sempre diferentes aparências e versões da realidade. Incessante e luminosa, ela é não obstruída e autoliberta; as obstruções surgem e cessam sucessivamente. Ela é naturalmente desobstruída, nenhuma obstrução altera sua qualidade básica de liberdade. Ela é não dual, portanto.

fonte: "A roda da vida como caminho para a lucidez", Ed. Peirópolis, 2010, 146-147.

Lama Padma Samten - Todos nós temos carmas primários e podemos exercer ações negativas

Todos nós temos carmas primários e podemos exercer ações negativas se surgirem condições secundárias. Uma vez que a ação negativa foi feita, é de difícil desmontagem.

fonte: "A roda da vida como caminho para a lucidez", Ed. Peirópolis, 2010, p. 145.

Lama Padma Samten - Os humanos têm condições de ouvir os ensinamentos

Os humanos têm condições de ouvir os ensinamentos porque tem inteligência e estão sempre em busca da felicidade. Como a impermanência manifesta-se em nossa vida a intervalos relativamente curtos, estamos sempre alternando felicidade e sofrimento, o que aumenta as chances de ficarmos receptivos ao Darma.

fonte: "A roda da vida como caminho para a lucidez", Ed. Peirópolis, 2010, p. 143.

Lama Padma Samten - A conexão com o lama

O aparecimento de um mestre em nossa vida é algo extraordinário. Podemos ter contato com várias linhagens, várias tradições religiosas, e um dia ouvimos alguém e sentimos: "É isso! É exatamente o que sempre pensei." Aquela pessoa traduz o que temos dentro de nós, ela nos conecta à linhagem de compaixão com que nos identificamos. Quando encontramos um mestre externo, isso significa que o nosso mestre interior já estava se manifestando. O que não temos dentro de nós não aparece do lado de fora.

Depois de encontrarmos nosso mestre e nos conectarmos a uma linhagem, é aconselhável nos mantermos dentro dela, sem misturar outros métodos. Porém, jamais devemos ser sectários; não devemos achar que nossa linhagem é melhor que as outras, que nós estamos certos e os outros errados.

No budismo, tomamos nosso lama como fonte de refúgio. Isso porque é ele que abre para nós a mandala de sabedoria, revela o mundo como um ambiente de perfeição onde podemos praticar. Dentro da paisagem de sabedoria descortinada pelo lama, as coisas fazem sentido, e a prática espiritual também. O lama nos introduz nessa mandala e nos conduz por dentro dela - esse é o fato mais importante de nossa vida. Por isso existe a tradição de profundo respeito e dedicação ao lama.

fonte: "A roda da vida como caminho para a lucidez", Ed. Peirópolis, 2010, p. 142.

Lama Padma Samten - A prática do Budismo Tibetano começa com os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente

A prática do Budismo Tibetano começa com os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, um conjunto de ensinamentos que constrói a atitude correta para percorrermos o caminho. Esses pensamentos nos retiram de uma condição de inconsciência e inércia e nos permitem entender o potencial positivo de que dispomos, e nos levam a entender a necessidade do caminho e a fonte da lucidez que pode nos ajudar nesse caminho.

fonte: "A roda da vida como caminho para a lucidez", Ed. Peirópolis, 2010, p. 41.

Lama Padma Samten - Refúgio na mandala do Buda

REFÚGIO NA MANDALA DO BUDA

Nesse ponto da prática tomamos refúgio no Buda, como natureza incessante e luminosa. Tomamos refúgio no Darma, como os ensinamentos do Buda. Tomamos refúgio na Sanga, como uma energia que emana do próprio Buda.

Quando meditamos juntos, a mandala se abre e começamos a ver diferente. Manter o refúgio é manter essa visão da mandala onde quer que estejamos. Perder o refúgio significa sair da mandala e entrar em uma paisagem de aflição. Não se trata de uma paisagem física, é uma visão lúcida da natureza incessante, luminosa e inseparável do conteúdo dos fenômenos condicionados. Podemos ir a cemitérios, prontos-socorros, a qualquer lugar, e levar a mandala.

Olhando do ponto de vista da mandala, é mais fácil vermos o lama como o Buda, o Darma e a Sanga, como as Três Joias, pois o papel do lama é chegar onde ninguém tem experiência de mandala e abri-la. Seu papel é não só abrir a mandala, como expandi-la e ajudar a preservá-la. Essa mandala não é criada pelo lama. É a mandala do Buda.

A diferença da mandala do Buda em relação a outras paisagens é que, quando a encontramos, percebemos que ela sempre existiu. Não é fabricada. As outras paisagens são fabricadas. A mandala do Buda é totalmente abrangente, não há fenômeno que ela não inclua. As outras paisagens tratam de algumas coisas, mas não tratam de outras. É por isso que os mestres dizem que precisamos ver com lucidez, ver a realidade como ela é. Assim veremos a mandala como ela é, não fabricada.

fonte: "A roda da vida como caminho para a lucidez", Ed. Peirópolis, 2010.

13 de abril de 2019

Sua Santidade, o Dalai Lama - Se os fenômenos não fossem vazios, não poderiam ser afetados por outras causas, não mudariam

Os fenômenos são vazios da existência inerente porque dependem de outras condições para sua existência. Inversamente, os fenômenos são capazes de funcionar porque são vazios da solidez da existência inerente. Se os fenômenos não fossem vazios da existência inerente, se eles existissem de fato por seu próprio poder, então eles não poderiam ser afetados por outras causas e condições - eles não mudariam. Nesse caso, eles não causariam prazer e dor, ajudariam ou prejudicariam. O bom e o mau seriam impossíveis.

(...)
 
[os objetos] trazem prazer e sofrimento porque eles não existem inerentemente

(...)

Em suma, a produção e desintegração, aumento e diminuição, e assim por diante, das formas são possíveis porque as formas são vazias de existência poderosa por si mesma. Fenômenos como as formas são considerados como surgidos dentro da esfera da natureza do vazio.

(...)

Como as formas são de origem dependente, elas são vazias de uma entidade independente com poder próprio.

fonte: "Como praticar", Ed. Rocco, 2003.

Sua Santidade, o Dalai Lama - Decidindo alcançar a iluminação

DECIDINDO ALCANÇAR A ILUMINAÇÃO

Uma vez que você tenha chegado ao ponto de querer, profundamente, fazer o possível para acabar com o sofrimento e suas causas e ajudar os outros seres vivos a conquistar a felicidade, reflita sobre como isso pode ser obtido. Isto só pode acontecer se as outras pessoas também entenderem como este processo funciona e, então, colocá-lo em prática. Assim, seu comprometimento com o bem-estar dos outros seres pode ser mais bem suportado ao ensiná-los como praticar e quais comportamentos abandonar. Dessa forma, eles também terão o poder de manter a felicidade e evitar o sofrimento. Não há outra maneira. Para isso acontecer, você deve conhecer a disposição íntima e os interesses dos outros, assim como o que ensinar para eles.

Então, para ajudar os outros, você deve estar totalmente preparado. Em que consiste essa preparação? Você deve remover todos os obstáculos de sua própria mente para saber tudo o que deve ser conhecido. O que os praticantes compassivos - chamados Bhodissatvas - realmente desejam não é apenas superar as obstruções que impedem sua própria libertação. Eles querem limpar o caminho para a onisciência, de modo que possam ter acesso às disposições dos outros e escolher quais técnicas os ajudarão. Se fosse apenas uma questão de escolha, os Bodhissatvas escolheriam primeiro remover as obstruções. Mas as emoções aflitivas, que nos mantêm aprisionados na existência cíclica, estabelecem as obstruções para a onisciência. Essas obstruções são predisposições da mente que fazem com que os fenômenos aparentem ter existência inerente. Sem primeiro sobrepor a principal emoção aflitiva - a ignorância que acredita na existência inerente -, você não poderá sobrepor as predisposições postas na mente pela ignorância. Pela purificação das obstruções aflitivas, assim como pelas predisposições estabelecidas por elas, você pode transformar sua própria consciência na consciência onisciente de um Buda, totalmente iluminada.

Em resumo, para trazer a felicidade completa para os outros, é necessário que você atinja a iluminação. Quando você entender isso e resolver buscar a iluminação pensando nos outros, é o que se chama de intenção altruísta para a iluminação, ou bodhichitta. Você pode gerar o poder do bodhichitta em você, seguindo a prática de Shantideva de ver a si mesmo e aos outros como igualmente desejosos da felicidade e, com isso, mudar a ênfase de seus objetivos para os de infinitas pessoas.

Há três diferentes estilos de atitudes altruístas, encontradas em três tipos de pessoas. O primeiro tipo é como um monarca, desejando atingir antes o estágio de Buda para poder ajudar os outros seres. A segunda é como um barqueiro, desejano chegar a outra margem junto com todos os outros seres. A última é como um pastor, desejando que todos os outros atinjam o estado de Buda primeiro, antes mesmo da iluminação do próprio pastor.

As duas últimas analogias apenas indicam a atitude compassiva de alguns tipos de praticantes. Na verdade não há nenhum caso como o do barqueiro, de todos conseguirem a iluminação simultaneamente, nem como o pastor, em que os outros conseguem primeiro. Em vez destes, a iluminação sempre chega em primeiro lugar, como um monarca, já que os Bodhisattvas às vezes decidem se tornar iluminados os mais rápido possível, para poder ajudar os outros melhor e em maior número.

Com o sábio tibetano no Sakya Pandita diz em seu 'Diferenciação dos três votos', Bodhisattvas têm dois tipos de desejos em orações, os que podem e os que não podem ser realizados. No 'Guia do modo de vida do Bodhissatva', de Shantideva, há muitos exemplos de desejos que, na verdade, não podem ser realizados, mas eles existem para fortalecer a vontade e a determinação. Por exemplo, a prática de transferir nossa felicidade e receber o ódio dos outros não é possível literalmente, a não ser, talvez, para pequenos sofrimentos. Mas esta prática, apesar de irreal, tem como objetivo aumentar a coragem de compaixão. As analogias do barqueiro e do pastor servem para indicar como é poderoso o desejo de Bodhisattvas de ajudar os outros.

Deixe-me exemplificar esta dedicação em um nível profundo de experiência. Havia um praticante erudito no monastério Drashikyil, em uma província no nordeste do Tibete chamado Amdo. Em 1950, quando os chineses comunistas invadiram e prenderam mil dos três mil monges do monastério, cem foram escolhidos para serem mortos. Ele era um deles. Ao ser levado para o local da execução, pouco antes de ser atingido por um tiro, ele orou:

Que todas as ações, obstruções e sofrimentos ruins de todos os seres
Sejam transferidos para mim, sem exceção, neste momento
E que minha felicidade e mérito sejam enviados para todos os seres
Que todas as criaturas sejam imbuídas desta felicidade


Apenas alguns instantes antes de ser morto, ele teve a presença espiritual de lembrar da prática de tomar para si o sofrimento de todos os seres e lhes dar sua própria felicidade! É muito fácil falar sobre esta prática quando as coisas estão bem, mas ele foi capaz de realizá-la no momento mais difícil. É uma indicação clara da realização espiritual adquirida de uma longa prática.

fonte: "Como praticar", Ed. Rocco, 2003.

Sua Santidade, o Dalai Lama - É bem mais razoável se dedicar ao serviço dos outros; você é um só, eles são muitos

Como Shantideva mostrou em sua prática, primeiro você se conscientiza de que todos os seres sencientes querem a felicidade e não querem o sofrimento, assim como você.

Dessa maneira, você e eles são iguais. Então, quando considerar que é apenas uma pessoa isolada, vivendo com um infinito número de seres sencientes, perceberá que é completamente ridículo desprezar o bem-estar alheio ou usá-lo em seu próprio benefício. É bem mais razoável se dedicar ao serviço dos outros.

Quando você considera a situação dessa forma, tudo fica mais claro. Não importa o quanto seja importante, você é apenas uma pessoa. E tem o mesmo direito de ser feliz que qualquer pessoa tem. Mas a diferença é que você é um só, eles são muitos. É um fato importante quando alguém perde a felicidade, mas não tão importante quando muitos outros perdem. Nesta perspectiva, você pode cultivar compaixão, amor e respeito pelos outros.

fonte: "Como praticar", Ed. Rocco, 2003.

Sua Santidade, o Dalai Lama - O processo da morte envolve a cessação, ou dissolução, de uma série de quatro elementos internos

O processo da morte envolve a cessação, ou dissolução, de uma série de quatro elementos internos: terra (as substâncias sólidas do corpo), água (os fluidos), fogo (o calor) e vento (a energia, o movimento). No dia-a-dia, esses elementos servem de base para a consciência, mas durante o processo da morte, a capacidade deles de sustentar a consciência diminui, começando com o elemento terra. Cada etapa da dissolução, na verdade, aumenta a capacidade do elemento seguinte sustentar a consciência.

fonte: "Como praticar", Ed. Rocco, 2003.


Ajahn Chah - A espiral da virtude, da concentração e da sabedoria

Buda ensinou uma saída para o sofrimento, para as causas do sofrimento e um caminho prático. Na minha experiência, conheci apenas esse caminho simples - bom no início como virtude, bom na metade como concentração, bom no final como sabedoria. Se você analisar cuidadosamente esses três aspectos, verá que eles realmente se fundem num só.

Consideremos, então, esses três fatores, assim relacionados. Como se pratica a virtude? Na realidade, para desenvolver a virtude, precisamos começar pela sabedoria. Tradicionalmente, falamos em cumprir os preceitos, em estabelecer primeiro a virtude. No entanto, para que ela seja absoluta, é preciso ter sabedoria para entender todas as suas implicações. Para começar, você precisa examinar o seu corpo e a sua fala, investigando o processo de causa e efeito. Se você vigiar o seu corpo e a sua fala, para compreender de que maneira eles podem prejudicá-lo, começará a entender, a controlar e a purificar tanto a causa como o efeito.

Se conhecer as características do que é válido e do que não é válido, verbal e fisicamente, já saberá por onde começar a praticar, de forma a renunciar o que é mau e a fazer o que é bom. Quando você renuncia ao mal e age de uma forma correta, a mente se torna firme, imperturbável, concentrada. Essa concentração controla as vacilações e as dúvidas referentes ao corpo e à fala. Com a mente em recolhimento, quando formas ou sons assomam, você pode vigiá-los e vê-los claramente. Pelo fato de não deixar a mente à solta, conhecerá a natureza de todas as experiências, de acordo com a verdade. Se esse conhecimento se tornar constante, nascerá a sabedoria.

Então, virtude, concentração e sabedoria podem ser consideradas como uma coisa ó. Quando amadurecem, tornam-se sinônimos - este é o Caminho Nobre. Quando a avareza, o ódio e a ilusão assomam, somente esse Caminho Nobre é capaz de destruí-los.

Virtude, concentração e sabedoria podem ser desenvolvidas para se suportarem mutuamente e, então, como uma espiral sempre em movimento, para poderem contar com as visões, os sons, os aromas, o gosto, o tato e os elementos mentais. Assim, aconteça o que acontecer, o Caminho sempre estará dominando a situação. Se o Caminho for forte, destruirá os defeitos: a avareza, o ódio e a ignorância. Se for fraco, os maus pensamentos podem assumir o comando matando a nossa mente. Visões, sons, etc. surgirão, e desconhecendo a sua verdade, permitiremos que nos destruam.

fonte: "Uma Tranquila Lagoa na Floresta - Meditações de Achaan Chah", organizado por Jack Kornfield e Paul Breiter, Ed. Pensamento, 1994.

Ajahn Chah - É tudo muito simples e direto

Pergunta: Mas se não estamos procurando coisa alguma, então o que é o Dharma?

Resposta: Tudo o que você vê é o Dharma; construir uma casa, descer a rua, meditar no banheiro ou aqui, no salão - tudo isso é Dharma. Quando você aprender corretamente, nada existirá no mundo que não seja Dharma. Mas você precisa entender. A felicidade e a infelicidade, o prazer e a dor são nossos eternos companheiros. Quando você entende a sua natureza, Buda e o Dharma estão exatamente ali. Quando você vê claramente, cada momento da experiência é Dharma. Porém, a maioria das pessoas reage cegamente a qualquer acontecimento agradável: "Oba, gostei disto! Quero mais!" - e a qualquer acontecimento desagradável: "Chega! Não gostei disto! Não quero mais." Se, ao contrário, você permitir a si mesmo enfrentar plenamente a natureza de cada experiência da maneira mais simples, você se tornará como um Buda.

Uma vez que tenha entendido, é tudo muito simples e direto. Quando surgem coisas agradáveis, entenda que são vazias. Quando surgem coisas desagradáveis, entende que não são você, nem são suas; elas passam, se vão. Se você não se ligar aos fenômenos como sendo parte de você, nem como se você fosse o seu legítimo dono, a mente chegará a um equilíbrio. Nesse equilíbrio reside o caminho certo, o ensinamento correto de Buda, que conduz à liberação. Muitas pessoas ficam realmente excitadas: "Será que posso chegar a este ou àquele nível de samadhi?" ou "Que poderes posso alcançar?" Elas omitem completamente o ensinamento de Buda em troca de uma outra opção que, na verdade, não é útil. Se você quiser ver, Buda está nas menores coisas que se encontram diante de você. E a essência desse equilíbrio consiste numa mente desembaraçada.

Quando começamos a praticar, é importante possuir o devido senso de direção. Em vez de apenas imaginar em que direção seguir e passar a andar em círculos, para fixar a rota você precisa consultar o mapa de alguém que já esteve lá antes. O caminho para a libertação que Buda ensinou em primeiro lugar foi o Caminho do Meio, que se situa entre os extremos da indulgência no desejo e da automortificação. A mente precisa estar aberta a todas as experiências sem, no entanto, perder o equilíbrio e cair nesses extremos. Isso permite que você veja as coisas sem reagir, sem se agarrar a elas e sem repeli-las.

Quando você entender esse equilíbrio, o caminho se tornará claro. Quanto mais o seu entendimento crescer, quando coisas agradáveis vierem ao seu encontro, mais você compreenderá que elas não duram, que são vazias, que não oferecem segurança. As coisas desagradáveis também não constituirão problemas, porque você verá que elas também não duram, que são vazias. Finalmente, quando você aprofundar no caminho, compreenderá que nada no mundo tem um valor essencial. Não há nada a que nos apegarmos. Tudo é como uma velha casca de banana, ou como a casca de um coco - não lhe servem de nada, não o atraem. Se perceber que as coisas do mundo são como cascas de banana, então você estará livre para andar por aí sem ser ferido ou incomodado de maneira alguma. Este é o caminho que o leva à liberdade.

fonte: "Uma Tranquila Lagoa na Floresta - Meditações de Achaan Chah", organizado por Jack Kornfield e Paul Breiter, Ed. Pensamento, 1994.

Ajahn Chah - Apego a fenômenos condicionados, renascimentos, renúncia

A tranquilidade da mente, no estágio inicial da concentração, deriva da simples prática da própria perspicácia. Quando, porém, essa calma cessa, sofremos porque nos apegamos a ela. Chegar à tranquilidade, de acordo com Buda, não significa ter chegado ao fim. Ainda existe sofrimento e transformação.

Sendo assim, Buda partiu dessa concentração, dessa tranquilidade, e olhou mais longe. Ele buscou a verdade das coisas até não se sentir mais apegado à serenidade, que não passa de outra realidade relativa, uma das muitas formações mentais, apenas uma etapa do caminho. Se você estiver apegado a ela, ainda estará apegada ao nascimento e à transformação baseado a seu bel prazer na tranquilidade. Quando ela se extinguir, começará a agitação e você se apegará mais ainda.

Buda prosseguiu na sua investigação, estudando o nascimento e a transformação para ver de onde procediam. Como ainda não conhecesse a verdade das coisas, empregou a mente para ver além, para analisar todos os elementos mentais que surgissem. Tranquilo ou não, ele continuou a inquirir, a ir ao fundo da questão, até que compreendeu, finalmente, que tudo o que viu, todos os cinco agregados do corpo e da mente são como uma barra de ferro incandescente. Quando esta barra está totalmente em brasa, onde encontrar um ponto frio para tocá-la? O mesmo é válido para os cinco agregados: tocar qualquer uma de suas partes causa dor. Portanto, você não deve se apegar nem à tranquilidade nem à concentração; não deve dizer que a calma ou a paz sejam você, lhe pertençam. Fazê-lo serve apenas para criar a dolorosa ilusão do Ego, um universo do apego e de desilusão - outra barra de ferro incandescente.

Na prática, a tendência é se agarrar, de considerar a experiência como eu, como minha. Se você pensa: "Estou calmo, estou excitado, sou bom, sou mau, sou feliz, infeliz", essa tendência a apegar-se ocasiona mais transformações e nascimentos. Quando cessa a felicidade, nasce a dor; quando cessa a dor, nasce a felicidade. Você se verá, incessantemente, vacilar entre o céu e o inferno. Buda viu que era essa a situação da sua mente e soube, devido a esse renascimento e a essa transformação, que a sua libertação ainda não havia se completado. Ele então reuniu esses elementos e contemplou a sua verdadeira natureza. Devido ao apego, existe nascimento e morte. Estar contente é nascer; estar triste é morrer. Tendo morrido, renascemos; tendo nascido, morremos. Este ciclo de nascimento e morte equivale ao incessante girar de uma roda.

Buda viu que não importa o que a mente cria: tudo não passa de fenômenos transitórios, condicionados, realmente vazios. Quando isso se tornou claro, deixou as coisas passarem, renunciou e pôs termo ao sofrimento. Você também precisa entender essas coisas, de acordo com a verdade. Quando conhecer as coisas como elas são, verá que esses elementos mentais não passam de uma impostura e se aterá aos ensinamentos de Buda de que essa mente nada possui, não tem origem, não nasce e não morre com ninguém. É livre, luminosa, resplandecente e inteiramente despreocupada. A mente se deixa invadir somente porque entende mal e se ilude com esses fenômenos condicionados, com esse falso senso de eu.

fonte: "Uma Tranquila Lagoa na Floresta - Meditações de Achaan Chah", organizado por Jack Kornfield e Paul Breiter, Ed. Pensamento, 1994.

Ajahn Chah - Virtude

A VIRTUDE

Existem dois níveis de prática. O primeiro estabelece o fundamento, um desenvolvimento de preceitos, de virtude ou de moralidade, para proporcionar felicidade, conforto e harmonia a todas as pessoas. O segundo, mais intenso e despreocupado com conforto, é a prática do Buda Dharma, voltado inteiramente ao despertar e direcionado à liberação do coração. Essa liberação é a fonte de sabedoria e da compaixão e o verdadeiro objetivo dos ensinamentos de Buda. O entendimento desses dois níveis constitui a base da verdadeira prática.

Virtude e moralidade são o pai e a mãe do Dharma que cresce dentro de nós, desde que provido de orientação e de alimentos adequados.

A virtude é a base de um mundo harmonioso, onde as pessoas podem viver como verdadeiros seres humanos, não como animais. O desenvolvimento da virtude constitui a essência de nossa prática. É muito simples. Siga os preceitos do treinamento. Não mate, não minta, não cometa aberrações sexuais, não tome drogas que o deixem indefeso. Cultive a compaixão e o respeito por toda a forma de vida. Cuidado com os bens, com as posses, com as suas ações, com as suas palavras. Sirva-se da virtude para tornar a sua vida simples e pura. Tendo a virtude como base de tudo o que fizer, a sua mente se tornará bondosa, límpida e quieta. A meditação medrará [crescerá, prosperará] facilmente nesse solo.

Buda disse: "Abstenha-se do que é mau, faça o bem e purifique o coração." Nossa prática, então, consiste em livrar-nos do que não tem valor e conservar o que é valioso. Você guarda ainda, em seu coração, algo mau ou não recomendável? Claro que sim! Então, por que não limpar a casa?

Na verdadeira prática, livrar-se do mal e cultivar o bem é correto, mas limitado. Precisamos, afinal, dar um salto para a frente e superar o bem e o mal. Chegaremos a uma liberdade que inclui tudo e a uma absoluta ausência de desejo, de onde o amor e a sabedoria fluem naturalmente.

O reto esforço e a reta virtude não são uma questão de como você se comporta aparentemente, mas de constante percepção e de contenção intensa. Assim, a caridade, se praticada com boas intenções, pode trazer felicidade a você e aos outros. Mas é preciso que, na raiz dessa caridade e para que ela seja pura, haja virtude.

Quando aqueles que não entendem o Dharma agem erradamente, olham à direita e à esquerda, a fim de ser certificarem de quem ninguém os está observando. Que tolice! Buda, o Dharma, o nosso karma, estão sempre vigiando. Você acha que Buda não enxerga longe? Nós não conseguimos escapar de nada!

Cuide da sua virtude como um jardineiro cuida de suas árvores. Não se apegue às grandes, às pequenas, às importantes, às insignificantes. Algumas pessoas querem simplificar. Elas dizem: "Vamos pular a concentração e ir diretamente para a percepção intuitiva; esqueçamos a virtude e comecemos pela concentração." O nosso apego nos fornece tantas desculpas...

Precisamos começar no ponto exato em que estamos, direta e simplesmente. Quando as duas primeiras etapas referentes à virtude e à reta visão estiverem cumpridas, então a terceira etapa, referente à libertação dos defeitos, ocorrerá naturalmente, sem maiores deliberações. Quando se faz a luz, não nos preocupamos mais com as trevas, nem nos preocupamos com o rumo que tomou a escuridão. Sabemos simplesmente que há luz.

Seguir os preceitos obedece, pois, a três níveis. O primeiro consiste em cumpri-los como regras de treinamento, dadas a nós pelos nossos mestres. O segundo nível ocorre quando assumimos e vivemos segundo essas regras, de livre e espontânea vontade. Mas para aqueles situados no plano mais elevado - os Nobres - não é necessário pensar em preceitos, no que é certo ou errado. Essa virtude verdadeira emana da sabedoria que entende profundamente as Quatro Nobres Verdades e age de acordo com esse entendimento.

fonte: "Uma Tranquila Lagoa na Floresta - Meditações de Achaan Chah", organizado por Jack Kornfield e Paul Breiter, Ed. Pensamento, 1994.