14 de abril de 2019

Lama Padma Samten - Cultura de paz

CULTURA DE PAZ

Dentro do budismo, a responsabilidade universal e a cultura de paz surgem como meios hábeis extraordinários para o benefício de todos os seres – a começar por nós mesmos. Para nós budistas, a melhor forma de relacionamento com todos os seres é a prática da bondade, amor e compaixão. Cuidar dos outros é a única forma de garantir o nosso próprio bem-estar, pois todos estão interligados, dependemos uns dos outros.

Todos os seres buscam a felicidade e tentam evitar o sofrimento. Não se trata de uma característica exclusiva dos humanos, ela é identificada também nos animais e plantas. Todos os seres buscam sempre o que possa garantir sua sobrevivência da melhor maneira possível e tentar evitar as ameaças. Na existência condicionada, tudo tem início, meio e fim, tudo é impermanente. Como tudo está sempre mudando, surge o conceito de positivo e negativo. Vemos certas coisas como benéficas para nossa busca pela felicidade, e outras como prejudiciais, capazes de gerar sofrimento. E muitas vezes o que era positivo torna-se negativo depois de um tempo, e vice-versa.

Do ponto de vista convencional, o budismo aceita a noção de positivo e negativo. Mas, do ponto de vista absoluto, existe a compreensão de que nossa natureza não pode ser afetada pelas circunstâncias que afetam nossas identidades e nosso corpo. Portanto, do ponto de vista da natureza última, não há nada que nos derrube, nos afete, nos destrua.

Também não consideramos que as pessoas podem ser divididas entre boas e más, nem trabalhamos com o conceito de culpa, de que as pessoas devam ser responsabilizadas diretamente por suas ações negativas. Trabalhamos com o conceito de que, se andarmos de maneira apropriada, colheremos o que desejamos: felicidade e segurança.

Essa é a perspectiva geral dos ensinamentos. Vamos ter ensinamentos provisórios e outros definitivos. Os ensinamentos relativos e direcionados à cultura de paz serão, pelo menos no início, provisórios. Dizem respeito ao mundo condicionado, onde, esquecidos do que somos verdadeiramente, nos ligamos a um corpo e dizemos: "Eu sou este corpo". Ainda que nosso corpo mude, continuamos a dizer: "Eu sou este corpo". Também dizemos: "Eu sou a minha identidade". Apresentamo-nos com nosso cartão de visitas: "Eu sou isso". Ainda que tenhamos muitos diferentes cartões, e tenhamos nos apresentado de formas diferentes no passado, dizemos: "Agora sou isso". E talvez não tenhamos nenhuma desconfiança de que não somos realmente aquilo.

Desse modo, se nossa identidade vai mal, nos sentimos muito aflitos; se nosso corpo está mal, nos sentimos muito aflitos, e nos guiamos por essas aflições. Acreditamos que, se seguirmos o que parece favorável e escaparmos do que parece desfavorável, atingiremos a felicidade. Vocês devem ter percebido que, dentro dessa perspectiva, ninguém obteve sucesso até hoje. Certas pessoas podem ter obtido muitos resultados, mas nunca o pleno sucesso.

Isso porque giramos dentro do que chamamos de experiência cíclica, sem solução. Buscamos a felicidade em coisas impermanentes, que inevitavelmente chegam ao fim e, quando isso acontece, vem o sofrimento. O budismo ensina que não adianta procurar a felicidade permanente no samsara, na existência condicionada. Precisamos ir além, procurar em outro lugar.

AS DIFICULDADES

Nesse momento, estamos imersos em uma versão de cultura de paz que apresenta problemas. Temos graves dificuldades na questão ambiental, tanto na exploração dos recursos naturais como na poluição. Temos também graves falhas em termos de indivíduos e sociedade. Estamos em uma cultura que permite e eventualmente estimula várias coisas negativas, desde hábitos alimentares nocivos e consumo de substâncias tóxicas até questões como corrupção e violência.

Assim, o nosso grande barco da cultura de paz tem furos no casco e está fazendo água. Algumas pessoas acreditam que os furos estão permitindo a entrada de um volume de água que as bombas não estão dando conta, e o barco está afundando. Para elas, esse processo não tem como ser contido, ou seja, a sustentabilidade da vida no planeta não tem solução. Outras pessoas vão dizer: há soluções. Outros ainda dizem: havendo ou não solução, farei a minha parte. Eu me incluo entre essas. Se houver solução, espero contribuir de alguma forma, e se não, já estamos salvos: é apenas um barco, há o grande oceano, nossa natureza não será efetivamente afetada, seja pelo que for.

Nossa cultura de paz precisa de alguns ajustes. Precisamos fechar os furos do casco do barco. Para fazer isso, já temos tudo que precisamos: uma natureza ilimitada e luminosa, capaz de construir e mudar as coisas, e a motivação para alcançar a felicidade e nos livrarmos do sofrimento. Precisamos entender que o barco é um só, e que vamos flutuar ou afundar com ele, todos juntos. Quando percebemos que as coisas que estamos fazendo para ter felicidade e evitar o sofrimento não funcionam, ficamos dispostos a mudar. Mas mudar como?

Dentro da visão limitada, de certo e errado, temos o hábito de julgar e culpar. E aí brigamos uns com os outros. No caso dos furos do caso do nosso navio, as pessoas podem se dividir em grupos e trocar acusações mútuas: "Foram vocês que fizeram o furo!", "Aquele grupo deveria ser jogado da amurada!" A noção de exclusão está muito arraigada dentro de nós, temos a tendência de ver todos que não são iguais como inimigos. A história das civilizações está repleta de exemplos de nações que consideravam os outros povos bárbaros. Até hoje é assim.

No budismo, não trabalhamos com a noção de que exista um centro do mal, ou um complô para afundar o navio, ou seres que desejem infelicidade e sofrimento. Por isso, não vamos querer excluir ninguém. Os comportamentos não são perfeitos, mas podem mudar. Todos temos a natureza ilimitada, temos receitas que funcionam e outras que não funcionam, e então temos que aprimorar os nossos processos.

AS SOLUÇÕES

Dentro da noção de responsabilidade universal, o que vamos fazer? Vamos cuidar para que nossas ações sejam menos agressivas e mais positivas. Quando agimos assim, ficamos mais felizes. Se pensamos que trazer benefício aos outros é um problema, e que arrancar as coisas dos outros ou jogá-los pela amurada é melhor, o casco do barco começa a se romper. A sustentabilidade fica afetada.

As pessoas autocentradas e que tentam arrancar coisas dos outros ficam aflitas, pois sentem-se cercadas de inimigos. Elas de fato cultivam inimizades e negatividade, e isso vai gerando isolamento, dificuldade para conviver com os outros e consigo mesmo. A agressividade torna-se um hábito. Os amigos e parentes tentam ajudar, mas é muito difícil. Vocês provavelmente já devem ter procurado ajudar pessoas que estão afundando no meio das aflições. É complicado porque, para nós, não há razão nenhuma para aquela aflição, mas o ser aflito está povoado de condições negativas e não vê solução.

Por outro lado, se desenvolvermos relações positivas com os outros, nos sentiremos mais felizes. Teremos identidades melhores, desenvolveremos pensamentos e atitudes positivas, vamos nos alimentar melhor, ter melhor saúde, tudo melhora. Desenvolver relações positivas não significa que vamos concordar com tudo. Em certos casos, precisamos desenvolver uma posição firme contra negatividades. Um bom exemplo é a educação de nossos filhos: deixar que façam tudo que quiserem jamais seria uma relação positiva.

Essa compreensão é a compreensão da cultura de paz, e ela tem uma recomendação específica e prática: devemos estabelecer relações positivas conosco, com os outros seres, com o ambiente social e com o ambiente natural. A qualidade básica por trás dessa recomendação é a estabilidade inseparável do conceito de liberdade. Nesse, liberdade significa não ser arrastado pelas situações, mas poder dirigir a própria ação com lucidez.

Se uma situação negativa nos aflita e perturba, perdemos a lucidez, não conseguimos dirigir nossa ação, somos levados pela responsividade. Quando mantemos a estabilidade, não somos afetados, mantemos nossa liberdade e lucidez, não adotamos atitudes de exclusão e revide.

Algumas pessoas conseguem mover-se em meio à negatividade sem atitudes de exclusão e de revide por terem uma fé profunda, e outras por terem uma lucidez muito grande. O melhor é juntar fé e lucidez. Nesse caso, temos a certeza intuitiva da fé associada ao raciocínio lúcido.

Esse é o conceito de cultura de paz. Poderíamos ensiná-lo aos nossos filhos nas escolas, mas a melhor forma de fazê-lo é viver esse princípio. Nosso objetivo é que as pessoas possam refletir sobre isso. Que elas percebam que podem se recriar como pessoas melhores adotando outra maneira de se relacionar consigo mesmas, com os demais seres, com a sociedade e com o ambiente. Vivendo na cultura de paz, vemos todos os seres como aliados: como nós, eles querem felicidade e não querem sofrimento. Não excluímos os seres imersos em negatividade, nem sentimos aversão por eles.

fonte: "A roda da vida como caminho para a lucidez", Ed. Peirópolis, 2010, p. 151-155.

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