8 de abril de 2019

Shunryu Suzuki - Tudo é apenas uma centelha no vasto mundo dos fenômenos


O propósito do zazen é atingirmos a liberdade do nosso ser, física e mentalmente. De acordo com o mestre Dogen, cada existência é uma centelha no vasto mundo dos fenômenos. Cada existência é mais uma expressão da qualidade do próprio ser. Eu vejo sempre muitas estrelas de madrugada. As estrelas são apenas a luz que viajou muitos quilômetros a grande velocidade a partir dos corpos celestes. Mas, para mim, as estrelas não são seres apressados; são calmos, estáveis e pacíficos. Dizemos: "Na tranqüilidade deve haver atividade; na atividade deve haver tranqüilidade". Na verdade, trata-se da mesma coisa; dizer "tranqüilidade" ou "atividade", apenas expressa duas interpretações diferentes do mesmo fato. Há harmonia em nossa atividade e, onde há harmonia, há tranqüilidade. Essa harmonia é a qualidade do ser. Mas a qualidade do ser nada mais é, também, que sua atividade ágil.

Quando fazemos nossa prática, sentimo-nos muito calmos e serenos; mas, na verdade, não sabemos o tipo de atividade que está havendo dentro do nosso ser. Há completa harmonia na atividade de nosso sistema físico; por isto, nele sentimos a tranqüilidade. Mesmo que não a sintamos, lá está a qualidade. Assim, não há por que nos preocuparmos a respeito de calma ou atividade, quietude ou movimento. Ao fazer algo, se você concentra sua mente na atividade com convicção, a qualidade de seu estado mental torna-se a própria atividade. Quando você se concentra na qualidade do seu ser, você está pronto para a atividade. O movimento nada mais é que a qualidade do nosso ser. Quando fazemos zazen, a qualidade do nosso sentar calmo, firme e sereno, é a qualidade da imensa atividade do nosso próprio ser.

"Tudo é apenas uma centelha no vasto mundo dos fenômenos", significa a liberdade de nossa atividade e de nosso ser. Se você se senta corretamente, com a correta compreensão, você alcança a liberdade de seu ser, apesar de ser uma existência temporal. Nesse exato momento, essa existência temporal não muda, não se move e é sempre independente das outras existências. No momento seguinte, outra existência surge, podemos nos transformar em outra coisa. A rigor, não há conexão entre o eu de ontem e o eu deste momento; não há qualquer conexão. O mestre Dogen disse: "Carvão não se torna cinzas". Cinzas são cinzas. Elas não pertencem ao carvão. Elas têm seu próprio passado e futuro. Elas são uma existência independente porque são uma centelha no vasto mundo dos fenômenos. Carvão preto e brasas são existências distintas. O carvão preto é também uma centelha no vasto mundo dos fenômenos. Onde há carvão preto, não há brasas. Portanto, carvão preto e brasas são independentes; cinzas e lenha são independentes; cada existência é independente.

Hoje estou sentado em Los Altos. Amanhã cedo estarei em San Francisco. Não há conexão entre o "eu" em Los Altos e o "eu" em San Francisco. São seres diferentes. Eis aí a liberdade da existência. E não há qualidade que conecte você e eu; quando digo "você", não há "eu"; quando digo "eu", não há "você". Você é independente e eu sou independente. Cada qual existe em um momento diferente. Mas isso não significa que sejamos seres muito diferentes. Na verdade, somos um e o mesmo ser. Somos o mesmo e, no entanto, diferentes. É muito paradoxal, mas realmente é assim. Porque somos seres independentes, cada um de nós constitui uma centelha no vasto mundo dos fenômenos.

Quando sento em zazen, para mim não há outra pessoa, mas isto não significa que eu ignore você. Sou um com todas as existências no mundo dos fenômenos. Assim, quando eu sento, você senta; todas as coisas sentam comigo. Assim é nosso zazen. Quando você senta, todas as coisas sentam com você. E tudo faz parte da qualidade do seu ser. Sou parte de você. Penetro na qualidade do seu ser. Portanto, nesta prática, nós temos absoluta liberdade com relação a tudo o mais. Se você compreende este segredo, não há diferença entre a prática do Zen e sua vida diária. Você pode interpretar tudo como desejar.

Uma pintura maravilhosa é fruto da sensibilidade em seus dedos. Se você sente a consistência da tinta em seu pincel, a pintura já está lá, antes mesmo de você pintar. Quando você molha o pincel na tinta, você já conhece o resultado do seu desenho; caso contrário, você não poderia pintar. Portanto, antes que você faça algo, o "ser" está lá, lá está o resultado. Ainda que pareça que está sentado sem fazer nada, toda a sua atividade passada e presente está inserida aí; e o resultado do seu sentar também está lá. Você não está descansando, não. Toda a atividade está incluída em você. Isso é o seu ser. Deste modo, todos os frutos de sua prática estão contidos no seu sentar. Assim é nossa prática, nosso zazen.

O mestre Dogen interessou-se pelo budismo ainda menino quando, ao observar a fumaça da vareta de incenso queimando ao lado do corpo de sua mãe morta, percebeu a fugacidade da nossa vida. Essa percepção cresceu dentro dele e acabou por levá-lo à iluminação e ao desenvolvimento de sua própria filosofia. Quando viu a fumaça da vareta de incenso e se deu conta da fugacidade da vida, sentiu-se muito só. Mas esse sentimento de solidão tornou-se mais forte e floresceu em iluminação quando ele tinha vinte e oito anos. E no momento da iluminação exclamou: "Não há corpo e não há mente!" Quando disse isso, todo seu ser tornou-se uma centelha no vasto mundo dos fenômenos, um clarão que continha todas as coisas, que abrangia tudo, e no qual havia uma imensa qualidade; o mundo fenomênico por inteiro estava incluído naquela centelha, naquele clarão, uma existência absoluta e independente. Esta foi sua iluminação. Partindo do sentimento de solidão ante a fugacidade da vida, ele alcançou a poderosa experiência da qualidade do seu ser. Ele disse: "Abandonei mente e corpo". Por pensar que tem corpo e mente, é que você se sente só; mas quando percebe que tudo é apenas uma centelha na vastidão do universo, você se torna muito forte e sua existência, plena de significado. Esta foi a iluminação de Dogen, esta é a nossa prática.

fonte: "Mente zen, mente de principiante", Ed. Palas Athena, 9ª ed., 2017

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