2 de janeiro de 2020

Kobo Daishi - Iroha uta - A canção da decisão

Kobo Daishi é o título póstumo dado a Kukai, grande mestre e fundador da Escola Shingon do budismo esotérico no Japão.

O "Iroha uta" é um poema sem paralelo em nenhuma tradição literária conhecida. Kobo Daishi (774-835) utilizou todas as 47 sílabas do silabário japonês sem repetir nenhuma. Desse modo, fixou o sentimento budista da impermanência num molde poético inesquecível.

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Iroha ni hohe to
tirinuru wo
waka yo tare so
tsune naramu

Uwi no okuyama
kefu koyete
asaki yume misi
wehi mo sesu

Coloridas e perfumadas,
as flores caem
e fenecem.
Quem, neste mundo transitório,
consegue tornar-se eterno?

Regresso hoje das montanhas flutuantes,
não mais apegado aos sonhos vãos,
livre enfim de toda ilusão.

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fonte: Os melhores poemas de amor da sabedoria religiosa de todos os tempos. Seleção, apresentação e tradução de José Jorge de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

1 de junho de 2019

Dzongsar Khyentse Rinpoche - Quando a renúncia é entendida como felicidade

Essencialmente, não é o ato de deixar o mundo material para trás que nós budistas cultuamos; antes, é a capacidade de enxergar os padrões habituais do apego a este mundo e à nossa pessoa, bem como a capacidade de renunciar a esse apego.

À medida que começamos a compreender as quatro visões, não nos desfazemos necessariamente das nossas coisas; começamos, sim, a mudar de atitude em relação a elas, modificando assim seu valor. Só porque você tem menos do que uma outra pessoa não significa que você tenha maior virtude ou pureza moral. Na verdade, a própria humildade pode ser uma forma de hipocrisia.

Quando compreendemos que o mundo material é impermanente e desprovido de essência, a renúncia deixa de ser uma forma de auto flagelação. Não significa que estamos sendo duros com nós mesmos. A palavra sacrifício adquire um significado diferente. Munidos desse entendimento, tudo passa a ter para nós um significado semelhante à saliva que cuspimos no chão. Não temos nenhum sentimentalismo em relação à saliva. A perda desse sentimentalismo é um caminho de sublime felicidade, sugata. Quando a renúncia é entendida como felicidade, as histórias de muitos outros príncipes, princesas e chefes guerreiros indianos, que outrora renunciaram à vida palaciana, tornam-se menos bizarras.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - A generosidade perfeita

Se formos medir a perfeição de um ato virtuoso, como a generosidade, por parâmetros materiais - quanto de pobreza foi eliminada -, nunca chegaremos à perfeição. A miséria e os desejos dos miseráveis nunca têm fim. Mesmo os desejos dos ricos nunca têm fim; na realidade, os desejos dos seres humanos jamais poderão ser plenamente satisfeitos.

De acordo com Sidarta, porém, a generosidade deve ser medida pelo grau de apego à coisa dada e ao eu que está dando. Ao perceber que o eu e tudo que ele possui é impermanente e desprovido de natureza verdadeira, nos desapegamos, e essa é a generosidade perfeita. Por isso, o primeiro ato que é recomendado nos sutras budistas é a prática da generosidade.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - A não existência do samsara é o nirvana

Como Buda disse no Sutra Prajnaparamita, todos os fenômenos são como um sonho e uma ilusão; mesmo a iluminação é como um sonho e uma ilusão. E, se houver algo maior ou mais grandioso do que a iluminação, isso também será como um sonho e uma ilusão. Seu discípulo, o grande Nagarjuna, escreveu que o Senhor Buda não afirmou que após abandonar o samsara existe o nirvana. A não existência do samsara é o nirvana. Uma faca é afiada num processo em que duas coisas se exaurem: a pedra de amolar e o metal. Do mesmo modo, a iluminação é resultado da exaustão dos obscurecimentos e da exaustão dos antídotos dos obscurecimentos. Ao final, o caminho da iluminação terá de ser abandonado. Se você ainda se define como budista, ainda não é um buda.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - O amor e a compaixão são como a luz que emana da natureza búdica

Um facho de luz na escuridão da tempestade

No entanto, como detectar a natureza búdica em meio a tanta ignorância, escuridão e confusão? O primeiro sinal de esperança para um marinheiro perdido no mar é avistar um facho de luz na escuridão da tempestade. Ao navegar em sua direção, ele chega à fonte de luz, ao farol.

O amor e a compaixão são como a luz que emana da natureza búdica. No começo, a natureza búdica é um mero conceito muito além da nossa visão, mas se gerarmos amor e compaixão um dia conseguiremos caminhar em sua direção. Pode ser difícil enxergar a natureza búdica daqueles que estão perdidos na escuridão da ganância, do ódio e da ignorância. A natureza búdica dessas pessoas é tão distante que parece inexistir. Entretanto, até as pessoas mais sombrias e violentas têm lampejos de amor e compaixão, ainda que breves e tênues. Se esses raros vislumbres forem nutridos e se for investida energia para seguir na direção da luz, a natureza búdica dessas pessoas pode ser revelada.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - As emoções não constituem uma parte intrínseca do nosso ser

Sidarta também estava tentando eliminar o sofrimento pela raiz, mas não estava idealizando soluções tais como iniciar uma revolução política, migrar para outro planeta ou criar uma nova ordem econômica mundial. Ele não estava sequer pensando em criar uma religião ou um código de conduta que propiciassem paz e harmonia. Sidarta explorou o sofrimento com a mente aberta e, por meio de incansável contemplação, descobriu que, no fundo, são as nossas emoções que provocam o sofrimento. Na realidade, elas são sofrimento. De um jeito ou de outro, direta ou indiretamente, todas as emoções nascem do egoísmo, no sentido de que implicam em apego ao eu.

Além disso, ele descobriu que, por mais reais que pareçam, as emoções não constituem uma parte intrínseca do nosso ser. Elas não são inatas, nem tampouco alguma espécie de maldição ou implante imposto por alguém ou por algum deus. As emoções surgem quando determinadas causas e condições se reúnem, como, por exemplo, quando você se precipita em pensar que alguém está a criticá-lo, ignorá-lo ou privá-lo de algum ganho. Então, as emoções correspondentes vêm à tona.

No momento em que aceitamos essas emoções, no momento em que entramos no jogo delas, perdemos a sanidade e a capacidade de percepção. Ficamos como que ligados a uma tomada de 220 volts. Assim, Sidarta encontrou a solução: consciência desperta. Se você realmente deseja eliminar o sofrimento, precisa acordar a consciência e prestar atenção às suas emoções, aprendendo a não ser envolvido pela tensão elevada e agitação que elas criam.

Se você examinar as emoções como Sidarta fez, se tentar identificar a origem delas, vai descobrir que as emoções partem de uma compreensão equivocada, sendo, por conseguinte, fundamentalmente falhas. Todas as emoções são, basicamente, uma forma de preconceito. Em cada emoção há sempre um componente de julgamento.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

Dzongsar Khyentse Rinpoche - O eu é ilusório, uma falácia, um erro, inexistente

Descendo à raiz: o Eu (inexistente)

Todas essas várias emoções e suas conseqüências provêm de uma compreensão equivocada, e essa compreensão equivocada provém de uma fonte, que é a raiz de toda a ignorância: o apego ao eu.

Presumimos que cada um de nós é um “eu”, que existe uma entidade chamada “a minha pessoa”. O eu, porém, é apenas mais uma compreensão equivocada. De modo geral, fabricamos a noção de um eu que parece ser uma entidade sólida. Somos condicionados a considerar essa noção como algo concreto e real. Pensamos, Eu sou esta forma, levantando a mão. Pensamos, Eu tenho forma; este é o meu corpo. Pensamos, A forma sou eu; eu sou alto. Pensamos, Eu habito esta forma, apontando para o peito. Fazemos o mesmo com os sentimentos, percepções e ações. Eu tenho sentimentos; eu sou minhas percepções...

Sidarta, porém, deu-se conta de que não existe, em lugar nenhum, uma entidade independente que corresponda ao conceito de eu, dentro do corpo ou fora dele. Como a ilusão de ótica do círculo de fogo, o eu é ilusório. Ele é uma falácia - fundamentalmente um erro e, em última análise, inexistente. No entanto, do mesmo modo que podemos nos iludir com o aro de fogo, todos nos iludimos ao imaginar que somos o eu.

Quando olhamos para o nosso corpo, sentimentos, percepções, ações e consciência, vemos que são diferentes componentes do que pensamos ser o nosso “eu”, mas, se formos examinar esses componentes, verificaremos que o “eu” não reside em nenhum deles.

O apego à falácia do eu é um ato de ridícula ignorância; ele perpetua a ignorância e leva a todo tipo de dor e decepção. Tudo o que fazemos na vida depende de como percebemos a nossa pessoa, o nosso eu; assim, se essa percepção estiver baseada em uma compreensão errada, como inevitavelmente está, esse erro permeará tudo o que fizermos, virmos e vivenciarmos. Não é uma simples questão de uma criança que interpreta erroneamente a luz e o movimento; toda a nossa existência está assentada em premissas muito frágeis.

No momento em que Sidarta descobriu que o eu não existia, descobriu que tampouco existia um mal dotado de existência intrínseca - o que havia era apenas a ignorância. Especificamente, ele contemplou a ignorância que cria o rótulo eu e o pendura em um grupo de fenômenos compostos, desprovidos de qualquer base, atribuindo importância a esse eu e afligindo-se em protegê-lo. Essa ignorância, ele constatou, conduz diretamente ao sofrimento e à dor.

fonte: "O que faz você ser budista?", Ed. Pensamento, 2008. Tradução de Manoel Vidal.

21 de abril de 2019

Gustavo Gitti - Quanto mais eu quiser expandir a compaixão, mais eu tenho que expandir a sabedoria

Quanto mais você vai horizontalmente, quanto você vai cada vez mais expandindo no sentido da compaixão - do abraço, do calor -, na verdade você vai ver que o que você precisa é, justamente, ampliar para o céu [verticalmente].

Então é paradoxal, quando você começa a analisar mesmo, você vai ver que para ampliar a mente no sentido de acomodar todos os seres, você vai ter que ampliar a mente no sentido de acomodar as experiências, como diz a Elizabeth Mattis-Namgyel: você precisa de espaço. Então para você ter compaixão, você precisa de espaço.

E o que abre espaço é sabedoria, porque a sabedoria significa ver espaço onde não parece ter espaço. Ver liberdade onde parece ter alguma coisa que não é liberdade. Ver amplidão onde parece ter fechamento. Ver algo completamente transparente onde parece ter alguma coisa sólida. Ver uma coisa livre onde parece ter alguma coisa que é alguma coisa.

A gente precisa dessa sabedoria, senão não vai abrir espaço. Não abrindo espaço, não chego em todos os seres. Também não vou ter os meios hábeis, não vou saber o que falar, e assim por diante.

Então, quanto mais eu quiser expandir a compaixão, mais eu tenho que expandir a sabedoria.

A sabedoria, o fim dela, o fim desse treinamento, é o que a gente vai chamar de iluminação - e a compaixão ela vai se expandindo, na decorrência disso. E aí, no fim, você não consegue separar compaixão de sabedoria, e vai surgir uma noção de compaixão não-dual, que é o terceiro tipo de compaixão.

Compaixão que é pelo outro é uma compaixão mais ou menos. Uma compaixão mesmo é além da noção de outro, de eu, de alguém ajudando alguma coisa, de alguém que precisa ser ajudado e até mesmo de sofrimento. Aí é quase que inseparável do espaço, não é mais assim "Eu tenho compaixão pelo outro"; não tem tanto isso.

Se eu quiser mesmo ajudar os seres, a melhor ajuda que eu posso fazer pelos seres é, primeiro, olhar que eles não são seres como parecem ser e eles não estão sofrendo como parecem. Porque se eu achar que eles são e que eles estão sofrendo, então agora eu tenho um problema, eu vou ter que tirar eles do sofrimento - e aí, "boa sorte".

Então, sem sabedoria, os sofrimentos não estão liberados. Daí é muito difícil de tirar o sofrimento. Com sabedoria, não tem sofrimento, daí é só ver. A compaixão se torna bem mais interessante com sabedoria. Não tem como fugir da sabedoria e da noção da liberação. Eu preciso manter a liberação sempre em mente.

fonte: curso "Praticando o darma nas relações", #3, a partir de 1:22:00 - http://www.cebb.org.br/audio-do-curso-praticando-o-darma-nas-relacoes-florianopolis-gustavo-gitti/

Gustavo Gitti - O outro nem quer você! Ele quer ser feliz e se iluminar!

Se vocês viverem o amor mesmo, não está conectado com uma pessoa. Não tem como estar conectado com uma pessoa. O amor é grande! Uma das coisas legais numa relação é você falar para a pessoa assim: "O jeito de eu te amar com o coração amplo é eu amar a todos. Porque se eu amar só você o meu coração fica estreito, daí nem você direito vai ter o amor que é o potencial do meu coração. Então para eu te amar, eu tenho que amar a todos, está bem? Se eu amar só você, eu vou amar com coração muito pequeno, então eu vou te amar muito mal. Para eu te amar bem, eu vou ter que amar todos."

A pessoa vai ter que entender que para você vir com toda atenção do mundo para ela, muito aberto, você não pode fechar para os outros. Porque se você fecha para os outros, você treina fechar, você chega para ela e está fechado. Então se ela quiser o melhor de você, o melhor amor de você, ela vai querer que você ame todos com esse amor. É muito legal.

Pergunta: Mas, via de regra, as pessoas não querem isso. A pessoa quer se sentir única, não quer que você ame a outra...

Gustavo Gitti: Não, ela quer ser feliz, na verdade. Ela acha que ela vai conseguir ser feliz sendo especial, ou tendo um comprovante seu. Mas na medida que ela ver que isso dá errado, várias e várias vezes, ela vai começar a questionar isso. Sua Santidade Dalai Lama diz o seguinte: "Todos os seres querem a felicidade e evitar o sofrimento. Essa é a versão Chenrezig. A versão Manjushri, de Dzongsar Khyenttse Rinpoche - todas tão perfeitas -, mas a versão Manjushri é: "Todos os seres querem a iluminação, no fundo."

Porque o que que é ser feliz? Então você pega esse desejo dos seres - se você levar até o fim, com sabedoria, isso é iluminação. Desfrutar do potencial, da natural felicidade, sukkha! Que a gente nem pensa mais em felicidade, é natural espaço, a felicidade não é nem uma questão mais. Então o que que é que os seres querem? Isso! Os seres querem ser iluminados. Então qualquer ação que você ajudar eles nesse caminho, mesmo se ele fizer birra ou não, em algum momento, não é que ele vai agradecer você, em algum momento, ele vai perceber que foi útil.

Então só de você chegar e manifestar esse exemplo diante dele, ele percebe que, para você ser a melhor pessoa ao lado dele, você não pode ser uma pessoa ruim para os outros. Você tem que ser a melhor pessoa para os outros. Mas quando você começa a ser a melhor pessoa para os outros, naturalmente ele não vai ser especial, ele basicamente está mais próximo. Só que ele começa a ser convidado para se alegrar por você. Daí você vai negar isso do outro? Na verdade, a felicidade dele vai vir disso! Não de você mimar ele! Então você quer que ele seja feliz, então você ajuda ele a ser feliz, que é o quê? Se alegrar por você! Então você não olha ele como alguém carente, dando nascimento inferior, você olha ele lá em cima!

(...)

Na verdade, o que ela quer mesmo é ser feliz, e como é que ela vai conseguir isso? Se iluminando. Se iluminar passa por se alegrar pela felicidade dos outros. A mente dela se expande.

Confiar que o outro, na verdade, quer se iluminar. Ele não quer alguém perto dele... Ele quer ser feliz. Ele não quer nem a gente! Você vai desperdiçar sua vida calculando quanto você tem que ficar perto de alguém? O outro nem quer você! Ele quer ser feliz e se iluminar! Você vai ser útil na medida que você apoiar isso. Se você ficar perto do outro e não apoiar isso, você está fazendo ele perder tempo. Por exemplo, se você alimentar a carência do outro, isso é horrível! Pode ser que pareça ser bom, porque o outro fica assim [próximo, vendido]... mas você tem que olhar a longo prazo: ele quer se iluminar, ele está longe de se iluminar, porque ele está sendo alimentado por você, e você está topando isso, alimentando a carência dele.

Não significa também que a gente não vai se aproximar dos seres, ou não vai em algum momento também alimentar um pouco, mas a gente vai fazer tudo isso visando a liberação dele. A gente tem um jogo longo com os seres. A gente também não quer seguir casado, não tem um jogo desse tipo, a gente quer se iluminar e a liberação de todos os seres. Então o nosso jogo com os seres é bem longo, é o mais longo que tem.

Por isso que a gente fica muito paciente. A pessoa vem e fala assim: "vocêêeeaahhhhh!!! [berro]" - você fica tranquilão... porque a gente vai se encontrar, para sempre! Então você fica super tranquilo, porque você não tem uma relação que acaba amanhã; o negócio é longo, é super longo. (...) Você nunca fecha as relações, com os seres todos.

Daí o casamento naturalmente vai se tornar mais uma dessas relações. Vocês não vão ter um estreitamento do tipo de achar que o casamento é uma relação especial. O casamento, basicamente, é morar junto, mais próximo, e só. E transar, ou qualquer coisa. Tem mais nada. O outro não é nada, você não é nada, nada foi consolidado, tem nada aqui de diferente. Então a gente tem que desromantizar a relação do casamento. Claro, socialmente a gente vai falar "estou casado", whatever. Mas a gente começa a olhar para os outros como mais um, mesmo. E olhar como mais um não significa diminuir o outro. Significa elevar todos os outros.

Por que que a gente abre o coração para um só? Não faz sentido. Mas não significa também transar com todos, porque também não faz sentido! E também nem tentar nem ser próximo de todos, porque naturalmente, pela questão cármica, não tem como a gente morar junto de todo mundo, tomar café da manhã com todo mundo, não tem! Então é tranquilo ter algumas pessoas mais próximas. Mas internamente você mantém equanimidade, uma sensação de sol, a gente brilha e irradia igualmente. Só que os seres podem fechar janelas, e também podem se aproximar e se distanciar. Mas nós não nos aproximamos, nem distanciamos e nem filtramos, nós irradiamos igualmente.

fonte: curso "Praticando o darma nas relações", #2, a partir de 1:00:49 - http://www.cebb.org.br/audio-do-curso-praticando-o-darma-nas-relacoes-florianopolis-gustavo-gitti/

Gustavo Gitti - Motivação é escolher qual mente você quer

A noção da motivação é como se fosse assim: a gente tem que lembrar que o tempo inteiro a gente tem uma mente; e o tempo inteiro essa mente ela está estreita ou ampla. Então o que que significa definir a motivação? Significa, simplesmente, definir qual mente você quer ter momento a momento; só isso. A mente já vai estar, momento a momento. Só que se eu não escolher qual mente eu quero ter, minha motivação, em geral, vai ser estreita. Então a prática da motivação é muito simples, ela é você escolher qual mente você quer ter, com qual mente você quer dar "oi" pras pessoas, com qual mente você quer praticar, então é um posicionamento da mente. Eu tenho uma mente, e com qual mente eu vou fazer o que eu vou fazer?

fonte: curso "Praticando o darma nas relações" #3, a partir de 10:00 - http://www.cebb.org.br/audio-do-curso-praticando-o-darma-nas-relacoes-florianopolis-gustavo-gitti/

19 de abril de 2019

Gustavo Gitti - Um bom caminho vai fazer você descobrir você mesmo, os outros e a vida

Pergunta - Quanto que a pessoa precisaria se afiliar a algo religioso para seguir um método ou caminho desse jeito que você colocou agora? A gente sente que isso às vezes é um ponto de aversão, de ouvir que isso está ligado a uma religião, ou ao budismo, e isso afasta algumas pessoas. Isso é budista? Esse caminho, por exemplo, o caminho que culmina na iluminação, isso é budista? Isso tem necessariamente um cunho religioso?

Resposta - O que a gente define como religião, se a gente questionar, questionar e questionar, a gente não sabe bem como que separa religião, ciência e filosofia. Se você questionar qualquer pessoa, ela vai ter problemas em definir o que que é o quê. Porque, de fato, isso tem uma mistura muito grande no nosso mundo.

Eu acho mais interessante pensar na experiência humana. A experiência humana tem muitas qualidades, muitas atividades que parecem mais científicas, mais filosóficas ou mais religiosas. Se a pessoa acha que ela não é religiosa, ela deveria olhar a casa dela. Ela tem um altar na casa dela. Nesse altar, ela cultua alguma coisa. Por um tempo, eu tiver um altar no meu quarto que tinha cremes de massagem, óleos, coisas assim. Era minha religião, meu altar. Tem pessoas que tem uma tela bem grande, que ela cultua aquilo. Às vezes ela cultua Netflix, é a religião da pessoa, o entretenimento. Tem pessoas que tomam o empreendedorismo como religião, e assim por diante. Então a gente tem religião, nós somos seres que têm essa sensação. É difícil a pessoa falar que não é, que não tem essa qualidade. Então, eu iria pela experiência humana.

A experiência humana não é budista, não é taoista. A mente humana não é budista. O sofrimento não é budista. A impermanência não é budista. A transformação da mente não é budista. A estabilidade, a lucidez, a sabedoria, a compaixão, não têm patente budista, nem taoista, nem cristã. Essas qualidades são acessíveis, não importa tanto o método, mas não faz sentido você ignorar os grandes seres da humanidade. Assim como se você quer aprender Neurociência, você não tem porque ignorar: "Ai! Mas isso aí é universidade." Igual a gente faz com religião. "Ah, não, não, não... eu queria Neurociência... não, universidade não dá pra mim... mestrado... eu não gosto de pessoas que fazem mestrado. E essa parte também, laboratório... pra mim também tenho dificuldade. Eu queria neurociência, mesmo... mas laboratório eu não piso, sabe?!"

Então a gente tem uma visão que é interessante. A pessoa está dentro do laboratório, olhando um cérebro. Quando vem jornalistas e perguntam para esse cientista, eles não perguntam "O que você acredita?". "Estamos aqui com o cientista, no que você acredita?". Não. Eles perguntam: "O que você descobriu". Porque tem uma sensação que tem algo na realidade que eles estão olhando.

Se você pega umas pessoas numa sala de meditação, num templo, elas estão ali por muito tempo, muitas horas. Assim como o cientista está olhando o cérebro, elas estão olhando a mente; essa coisa que a gente baniu da cultura também. Elas estão olhando a mente. Para nós, em geral, parece que a pessoa não está fazendo nada. Quem está olhando um cérebro, "Ah, isso sim, isso é Ciência." Mas olhar a mente, não. A gente valoriza mais o cérebro do que a mente. Mas essa pessoa que está há muito tempo olhando a mente, quando vem o jornalista, ele não pergunta "O que você descobriu?". Ele pergunta: "No que você acredita?". "No que os budistas acreditam?". Então não é esse o ponto.

O ponto é a gente entender que existe uma ciência em primeira pessoa, que está cada vez mais reconhecida, é só olhar os trabalhos do Instituto Mind and Life. Existe uma ciência em primeira pessoa de investigação da mente. E quando a gente começa a fazer esse trabalho, vamos descobrir que a mente tem esse potencial de compaixão, que não é budista, de sabedoria, etc. Mas quem fez esse trabalho, muitas vezes, está dentro de uma universidade, de uma instituição, de uma organização, que é justamente para chegar até nós os métodos. Imagina como a gente teria acesso a tudo isso que a gente descobriu, sem museus, sem bibliotecas. "Ah, eu quero muito estudar literatura... mas biblioteca, pra mim... eu não passo por esse portão aí da USP, porque..."

Então não faz sentido a gente ter esse pé atras com religião, com templos, com roupas e coisas do tipo. A gente vê um cara vestido todo de vinho, ou açafrão, ou todo de preto, daí a gente: "Ai, ele é religioso". A gente vê um outro todo vestido de branco [médico] e acha ótimo. Então não tem porque a gente ter esse pé atrás com aspectos culturais e ritualísticos. A gente tem rituais também na nossa cultura. A gente não deveria ter esse pé atrás só porque aquilo é diferente [vindo de outra cultura]. Não é "Ai, é religioso, então eu não posso."

E uma vez que você começa a entender que você não quer virar budista, você começa a se apropriar, se empoderar desses métodos, pegar para você e fazer aquilo ser vivo e testar, se funciona ou não funciona. Nunca ninguém entra na USP para virar uspiano; se virou, é um problema. A pessoa entra para usar a USP pro caminho dela. Assim também é uma boa relação com o budismo, ou qualquer outro caminho: você usa aquele método. Você não entra para virar budista, você entra para virar lúcido, estável, compassivo. E aí você usa!

Na verdade, a gente não está usufruindo da riqueza da nossa família humana. A gente deveria olhar para todos os seres lúcidos do passado e falar: "meu, tem muita riqueza!" Se essa riqueza chegou para mim por meio das organizações budistas, organizações Tabajara [risos], ou não, não importa. Importa é esse método.

Quanto mais eu olho o método, ou seja, quanto mais, no caso do budismo, quanto mais budista eu viro, menos budista eu viro. Mais eu percebo que não tem nada religioso ali. Tem só assim: "Verifique a sua mente. Experimente tal coisa. Compaixão funciona assim. Veja como você sofre quando é assim." E assim vai. Não tem crenças ali. Se tiver crenças, descarte; você não está num bom caminho. Mas se quanto mais você arranha, mais aprofunda, menos crença você tem e mais espelho da sua mente e da vida; mais profunda fica tua relação com a vida; mais o budismo te leva para fora dele - isso é um bom caminho.

Esse também é um bom professor. Professor de seita vai levar para dentro dele - muitas vezes de modo real, ele pra dentro de você -, ele não vai te levar para fora dele, para além dele. Um bom caminho vai fazer você descobrir você mesmo, os outros e a vida. A gente poderia entender as práticas das tradições de sabedoria desse modo.

fonte: "Como viver uma vida com sentido" (Podcast Coemergência), a partir de 17:25 - http://www.coemergencia.com.br/coemergencia-1-gustavo-gitti/

Thich Nhat Hahn - O Nirvana é, antes de tudo, a remoção das percepções erradas

O Nirvana é, antes de tudo, a remoção das percepções erradas. E quando você remove percepções erradas, você remove o sofrimento.

Ao meditar profundamente, você descobre que mesmo ideias como ser e não-ser, nascimento e morte, ir e vir, são ideias erradas. Se você pode tocar a realidade em profundidade, você percebe que tal coisa, que significa a realidade suprema, está livre do nascimento, da morte, do vir, do ir, do ser, do não-ser. É por isso que o Nirvana é, antes de tudo, a remoção de noções, de ideias, que servem de base para o mal-entendido e o sofrimento.

Se você tem medo da morte, do nada, do não-ser, é porque você tem percepções erradas sobre a morte e sobre o não-ser. O cientista francês Lavoisier disse que "não há nascimento, não há morte". Ele apenas observou a realidade ao seu redor e chegou à conclusão de que "rien ne se crée, rien ne se perd."

(...)

O Buda não morreu. O Buda só continuou com sua sanga, pelo seu dharma, e você pode tocar o Buda no aqui e no agora. E é por isso que ideias como nascer, morrer, ir e vir, ser e não ser, devem ser removidas pela prática de olhar profundamente. E quando você pode remover essas noções, você é livre e não tem medo. E o não-medo é o verdadeiro fundamento da grande felicidade. Como até agora o medo existe em seu coração, a felicidade não pode ser perfeita.

E é por isso que o Nirvana não é algo que você recebe no futuro. Nirvana é a capacidade de remover as noções erradas, percepções erradas, que é a prática da liberdade. O nirvana pode ser traduzido como liberdade: liberdade das visões. E no budismo, todas as visões são visões erradas. Quando você entra em contato com a realidade, você não tem mais visões. Você tem sabedoria. Você tem um encontro direto com a realidade e isso não é mais chamado de visão.

fonte: "Budismo, por Thich Nhat Hanh" - https://www.youtube.com/watch?v=moUVnxmek1Q

16 de abril de 2019

Chögyam Trungpa Rinpoche - A compaixão torna possível as ações transcendentais do bodisatva

A compaixão como a chave para a via aberta, o Mahayana, torna possível as ações transcendentais do bodisatva. O caminho do bodisatva inicia-se com generosidade e abertura - oferecer e abrir-se, o processo de entrega. A abertura não é uma questão de dar alguma coisa a alguém, mas de abrir mão de exigências e dos critérios básicos dessas exigências. Essa é a dana paramita, a paramita da generosidade. É aprender a confiar no fato de que não é preciso garantir seu terreno; é aprender a confiar em sua riqueza fundamental; é poder correr o risco de estar aberto. Essa é a via aberta. Se há uma renúncia à atitude psicológica de "exigir", a sanidade básica começa a se desenvolver e isso conduz à ação seguinte do bodisatva - shila paramita, a paramita da moralidade ou da disciplina.

Estando aberto e tendo renunciado a tudo, sem mais referências aos critérios básicos do "eu estou fazendo isto, eu estou fazendo aquilo", sem referência a si mesmo, outras situações ligadas à manutenção do ego ou ao seu enriquecimento tornam-se irrelevantes. Essa é a moralidade final, que intensifica a situação e abertura e coragem: não há medo de ferir a si mesmo nem a outras pessoas porque você está completamente aberto. Você não sente que as situações deixam de lhe inspirar, o que lhe traz paciência, kshanti paramita. E a paciência conduz à energia, vyria, a "qualidade do deleite". Há a intensa alegria do envolvimento, que é energia, e que também proporciona a visão panorâmica da meditação aberta, a experiência de dhyana, a "abertura". Você já não olha a situação externa como separada de você, tão envolvido que está na dança e no jogo da vida.

Você torna-se então ainda mais aberto. Não classifica as coisas como tendo sido rejeitadas ou aceitas. Você simplesmente acompanha cada situação. Não participa de nenhuma disputa, nem a que tenta derrotar um inimigo, nem a que busca um objetivo. Não há envolvimento como o receber nem com o dar. Nenhuma esperança e nenhum medo. Esse é o desenvolvimento de prajna, o "conhecimento transcendente", a capacidade de ver as situações como são.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016, p. 121-122.

Chögyam Trungpa Rinpoche - A compaixão é a atitude final da riqueza

Compaixão nada tem a ver com conquistar algo. É espaçosa e muito generosa. Quando uma pessoa manifesta a verdadeira compaixão, não sabe se está sendo generosa com os outros ou consigo mesma, porque a compaixão é uma generosidade ambiental, sem direção, sem "para mim" e sem "para eles". É cheia de alegria, de uma alegria que existe espontaneamente, uma alegria constante no sentido de confiança, no sentido de que essa alegria contém uma enorme riqueza, um tesouro.

Poderíamos dizer que a compaixão é a atitude final da riqueza: uma atitude contra a pobreza, uma guerra declarada à escassez. Contém toda a sorte de qualidades heroicas, atraentes, positivas, visionárias, expansivas. E implica reflexão em ampla escala, um modo mais livre e expansivo de relacionar-se consigo mesmo e com o mundo. É precisamente por isso que ao segundo yana se dá o nome de "Mahayana", o "grande veículo". Seria a atitude de quem já nasceu fundamentalmente rico e não daquele que ainda precisa enriquecer. Sem esse tipo de confiança, a meditação não pode, de modo algum, ser transformada em ação.

A compaixão convida automaticamente ao relacionamento com as pessoas, porque elas já não significam um desgaste de energia para você. Elas recarregam sua energia, uma vez que, no processo de relacionar-se com elas, você reconhece a sua riqueza, o seu tesouro. Nessas circunstâncias, se há tarefas difíceis para cumprir, tais como lidar com pessoas ou situações da vida, você não se sentirá como se lhe faltassem recursos. Toda vez que você encara uma tarefa difícil, ela se apresenta como uma ótima oportunidade para demonstrar sua riqueza, seus recursos. Não há nenhum sentimento de pobreza nesse modo de vida.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016, p. 120-121.

14 de abril de 2019

Chögyam Trungpa Rinpoche - Meditação é o ato contínuo de ser amigo de si mesmo

Examinamos e vivenciamos o auto-engano plenamente. Andamos carregando um fardo muito pesado, como a tartaruga carrega sua carapaça. Tentamos continuamente fechar-nos nessa carapaça, tentando, com agressão e pressa, verdadeiramente chegar a algum lugar. Precisamos abrir mão de toda a pressa e agressividade, de toda espécie de exigências. Precisamos desenvolver alguma compaixão por nós mesmos, e aí inicia-se a via aberta.

Nesse ponto, é necessário discutir o significado de "compaixão", que é a chave da via aberta e sua atmosfera básica. A melhor e mais correta maneira de apresentar a ideia de compaixão é em termos de clareza, clareza essa que é fundamentalmente calorosa. Nessa fase, sua prática de meditação é o ato de confiar em si mesmo. À medida que a prática ganha destaque em meio às atividades da vida cotidiana, você passa a confiar em si mesmo e a assumir uma atitude compassiva. Nesse sentido, a compaixão não é ter pena de alguém. É essa base calorosa. Por mais espaço e claridade que haja, há também esse calor, uma agradável sensação de que coisas positivas estão acontecendo em nós constantemente. Seja lá o que você estiver fazendo, isso não é visto como algo que arrasta você mecanicamente para uma meditação autoconsciente, mas a meditação torna-se uma coisa espontânea e prazerosa. É o ato contínuo de ser amigo de si mesmo.

Assim, tendo estabelecido amizade consigo, não se pode simplesmente guardar essa amizade dentro de si - é preciso um escape, que é o relacionamento com o mundo. Nessas condições, a compaixão passa a ser uma ponte com o mundo exterior. A confiança e a compaixão em relação a si mesmo traz inspiração para você dançar com a vida, comunicar-se com as energias do mundo.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Lúcida Letra, 2016, p. 119.

Sogyal Rinpoche - Treinar a mente não é subjugá-la

“Treinar” a mente não significa, de modo algum, subjugá-la pela força ou submeter-se a uma lavagem cerebral. Treinar a mente é, antes de tudo, ver de maneira direta e concreta como ela funciona, um conhecimento que você tira dos ensinamentos espirituais e da experiência pessoal na prática da meditação. Aí você pode usar a compreensão para domar a mente e trabalhar habilmente com ela, fazendo-a mais e mais dócil, de modo a poder tornar-se mestre da sua própria mente, empregando-a em seu potencial mais amplo e benéfico.

fonte: "O livro tibetano do viver e do morrer", Ed. Palas Athena, 1999.

Sogyal Rinpoche - A meditação é nada senão habituar-se com a prática da meditação

A meditação é nada senão habituar-se com a prática da meditação. (...) A meditação não é esforço, mas naturalmente assimilar-se nela. (...) Mais do que observar a respiração, deixe-se gradualmente identificar com ela, como se você se transformasse nela.

fonte: "O livro tibetano do viver e do morrer", Ed. Palas Athena, 1999.

Sogyal Rinpoche - Inspiração para meditação

INSPIRAÇÃO

Disse aqui que a meditação é a estrada para a iluminação e o maior empenho da nossa vida. Todas as vezes que falo a respeito da meditação para meus alunos, sublinho a necessidade de praticá-la com disciplina resoluta e orientada devoção; ao mesmo tempo, sempre lhes digo como é importante fazer isso do modo mais criativo e inspirado possível. Em certo sentido a meditação é uma arte, e você deve trazer até ela o deleite do artista e a fertilidade da invenção.

Torne-se tão engenhoso no inspirar-se para obter sua paz quanto você é nas andanças neuróticas e competitivas do mundo. Há muitas maneiras de abordar a meditação de forma tão jovial quanto possível. Você pode usar a música que mais o comove para abrir seu coração e sua mente. Pode colecionar trechos de poesia, citações ou passagens de ensinamentos que durante anos o sensibilizaram, tendo-os perto de você para elevar seu espírito. (...) Você também pode usar reproduções de quadros que lhe transmitam o sentido do sagrado, colocando-os na parede de sua sala. Ouça uma fita cassete com ensinamentos de um grande mestre, ou um cântico sagrado. Pode fazer do lugar em que medita um paraíso simples, com uma flor, um bastão de incenso, um candeeiro, a fotografia de um mestre iluminado, ou a imagem de uma deidade ou um buda. Você pode transformar o mais comum dos quartos num espaço íntimo sagrado, num ambiente onde todos os dias você irá encontrar-se com o seu verdadeiro eu, na feliz e alegre cerimônia de um velho amigo que acolhe outro.

E se achar que a meditação não chega fácil à sua sala na cidade, seja criativo e saia para a natureza. Ela é sempre uma fonte infalível de inspiração. Para acalmar sua mente, dê um passeio no parque ao nascer do sol, ou observe o sereno numa rosa do jardim. Deite-se na grama e contemple o céu, deixando sua mente se expandir em sua amplidão. Deixe que o céu de fora desperte o céu que há dentro de você. Entre num riacho e misture sua mente à música da água; torne-se um com essa sonoridade incessante. Sente-se ao lado de uma cascata e deixe seu riso purificador refrescar-lhe o espírito. Caminhe numa praia e receba o vento do mar, em cheio, doce, em seu rosto. Comemore e use a beleza do luar para equilibrar sua mente. Sente-se junto a um lago ou num jardim e, respirando tranqüilamente, deixe sua mente quedar-se silenciosa enquanto a lua sobe majestosa e lenta na noite sem nuvens.

Tudo pode ser usado como um convite à meditação. Um sorriso, um rosto no metrô, a visão de uma pequenina flor crescendo numa rachadura do calçamento, um belo traje numa vitrina, o modo como o sol banha vasos de flores no peitoril de uma janela. Esteja desperto para qualquer sinal de beleza e graça. Ofereça cada alegria, mantenha-se desperto em todos os momentos para "as novidades que sempre estão chegando do silêncio".

Aos poucos você se transformará no mestre de sua própria bem-aventurança, o alquimista de sua própria alegria, com todas as espécies de medicamento sempre à mão para elevar, incentivar, iluminar e inspirar cada respiração e movimento seus. O que é um grande praticante espiritual? É alguém que vive sempre em presença do seu próprio eu verdadeiro, alguém que encontrou e usa sempre as fontes da inspiração profunda. Como o moderno escritor inglês Lewis Thompson escreveu: "Cristo, poeta supremo, viveu a verdade tão apaixonadamente que cada gesto seu, a uma só vez Ato puro e Símbolo perfeito, personifica o transcendente".

É para personificar o transcendente que estamos aqui.

fonte: "O livro tibetano do viver e do morrer", Ed. Palas Athena, 1999.

Sogyal Rinpoche - Meditar é interromper por completo o modo como normalmente operamos

Via de regra desperdiçamos nossas vidas distraídos do nosso eu verdadeiro, numa atividade sem fim; a meditação é o caminho para trazer-nos de volta a nós mesmos, onde podemos realmente experimentar e provar nosso ser completo, além de todos os padrões habituais. Nossas vidas são vividas em intensa e ansiosa luta, num turbilhão de velocidade e agressão, competindo, apegando-nos, possuindo e conquistando, sobrecarregando-nos sempre de atividades irrelevantes e de preocupações.

A meditação é o exato oposto disso. Meditar é interromper por completo o modo como “normalmente” operamos, em benefício de um estado isento de cuidados e tensões em que inexiste competição, desejo de posse ou apego a qualquer coisa, sem a luta intensa e ansiosa, sem fome de adquirir. Um estado desprovido de ambição onde não cabe nem o aceitar nem o rejeitar, nem a esperança nem o medo, um estado em que lentamente começamos a libertar-nos das emoções e dos conceitos que nos aprisionaram, até chegarmos a um espaço de simplicidade natural.

fonte: "O livro tibetano do viver e do morrer", Ed. Palas Athena, 1999.

Chögyam Trungpa Rinpoche - A compaixão é a atmosfera aberta na qual prajna enxerga

Como tivemos ocasião de discutir na palestra sobre a ação do bodhisattva, prajna é um estado muito claro, preciso e inteligente de ser. Possui uma qualidade aguçada, a capacidade de penetrar e revelar situações. A compaixão é a atmosfera aberta na qual prajna enxerga. É uma aberta consciência de situações, que, instruída pelo olho de prajna, desencadeia a ação. A compaixão é muito poderosa; precisa, porém, ser dirigida pela inteligência de prajna, assim como a inteligência precisa da atmosfera da abertura básica da compaixão. As duas precisam ocorrer simultaneamente.

fonte: "Além do materialismo espiritual", Ed. Cultrix.